Ministro da Justiça confessa violação da Constituição
Foto: Cristiano Mariz/VEJA
Em 37 palavras, o ministro da Justiça, Anderson Torres, confessou a intenção e a coautoria de uma violação da Constituição. Ele escreveu em redes sociais: “Assim que tomei conhecimento de detalhes asquerosos do filme ‘Como se tornar o pior aluno da escola’, atualmente em exibição na @NetflixBrasil, determinei imediatamente que os vários setores do @JusticaGovBR adotem as providências cabíveis para o caso!!”
A comédia está em exibição desde 2017, com classificação indicativa para maiores de 14 anos. Torres não identificou quem lhe chamou a atenção sobre “detalhes asquerosos”, como julga, mas deixou claro que viu na ficção uma oportunidade de moldar a própria realidade.
Coincidência ou não, ele aspira uma vaga de candidato a deputado pela ala bolsonarista do Centrão, em Brasília. Sua dificuldade estaria na escassez de votos, mas isso pode ser pouco para quem se mostra fascinado pelo espetáculo do seu próprio fascínio.
Ontem, o Diário Oficial estampou o resultado da delinquência ministerial: o governo tentou restaurar a censura. Determinou a cinco empresas privadas de comunicação (Netflix, Globo, Google, Apple e Amazon) que suspendam “a disponibilização, exibição e oferta do filme”. Torres delegou a uma subordinada, Lilian Claessen Brandão, a assinatura do ato com o selo do Departamento de Defesa do Consumidor. Por lei, a principal atribuição do Ministério da Justiça é a “defesa da ordem jurídica, dos direitos políticos e das garantias constitucionais”.
Tem-se, agora, uma situação incomum: o servidor público que na hierarquia governamental é legalmente responsável pela zeladoria da Constituição, confessou em público conspiração e ordem para uma violação, executada por uma funcionária submissa. A Constituição, felizmente, possui uma artilharia de autodefesa. Por isso, o ato de censura do Ministério da Justiça é nulo, sem efeito desde o momento da assinatura. As empresas simplesmente decidiram não obedecer à determinação governamental.
“Ela prevalece sobre todas as leis”, explica Miro Teixeira, que foi deputado constituinte. “O inciso IX, do artigo quinto, assegura a liberdade de expressão, independentemente de censura ou licença. Governos não revogam a Constituição.”
Essa nova tentativa de resgate da censura apenas confirma a sedução autoritária que permeia a temporada eleitoral, perceptível em atos e discursos de alguns candidatos do governo e, também, da oposição. Já houve ministro da Justiça, Armando Falcão, que deu ordem para censurar uma obra musical porque continha trechos recitados da Declaração de Direitos Humanos — “manobra internacional” contra o regime, foi a justificativa.
Naquele 1974, um general extremista, Antonio Bandeira, montou na Polícia Federal uma rede de informantes para a censura oficial. Mulheres de oficiais militares frequentavam teatros e cinemas com a missão de delatar o que julgassem ofensivo ao estandarte da crença em Deus, na Pátria e na Família – lema que o Barão de Itararé converteu para “Adeus, Pátria e Família!” Falcão e Bandeira eram generais de uma ditadura. Torres é ministro da Justiça num regime democrático.
A violação constitucional, confessa, o deixa exposto a múltiplas acusações, como as de crime de responsabilidade e de prevaricação. Caso tenha feito consulta prévia ao chefe, pode arrastá-lo no turbilhão da teoria jurídica sobre o domínio do fato.
Por ironia, Anderson Torres virou estrela de um desfecho inimaginável na comédia “Como se tornar o pior aluno da escola”: se tornou um ministro “radioativo” sentado a cem metros do Palácio do Planalto, o comitê de reeleição de Jair Bolsonaro.