Rússia, Ucrânia e Ocidente vivem impasse perigoso
Foto: Ozan Kose/AFP
A terceira semana da invasão russa da Ucrânia, maior confronto em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial, começou nesta quinta (10) com um impasse perigoso e generalizado.
Na Turquia, o primeiro encontro dos chanceleres Serguei Lavrov (Rússia) e Dmitro Kuleba (Ucrânia) terminou como esperado: sem avanço, para a alegria de quem manipulou o mercado vendendo na véspera a ideia de que a paz estaria à mão.
Em solo ucraniano, a rotina da semana anterior seguiu, com os russos aumentando a pressão militar, embora sem ainda ataques decisivos. Kiev, por sua vez, acusa Moscou de bombardear civis de forma deliberada, enquanto corredores humanitários são desenhados pelo país.
Já no Ocidente, essa amálgama liderada pelos Estados Unidos e seus aliados europeus, há sinais até aqui inauditos de desentendimentos. A Polônia, mais beligerante membro da Otan no leste do continente, tem insistido em uma ação mais incisiva da aliança militar ocidental contra os russos, um movimento que gera temores de uma Terceira Guerra Mundial.
O dia começou, politicamente falando, com o encontro diplomático em Antália. O anfitrião, o chanceler turco Mevlüt Çavuşoğlu, o qualificou de “muito difícil, mas civilizado”. As linguagens corporais de Lavrov e Kuleba, tanto nas fotos oficiais quanto nas entrevistas coletivas posteriores, só transpareciam a primeira parte da definição.
“Não houve avanço”, disse Kuleba, repetindo a posição de seu chefe, o presidente Volodimir Zelenski. Ele diz que os termos do russo Vladimir Putin para acabar com a guerra, em especial da forma com que são colocados, equivalem a uma rendição que não irá ocorrer.
“A Ucrânia parece querer fazer reuniões só por fazer reuniões”, retrucou separadamente Lavrov, o decano da diplomacia mundial que transformou-se em pária com a guerra. Ele disse, contudo, que as negociações continuarão. “Não esperávamos milagres”, afirmou o turco, representando um governo que se equilibra entre sua posição de membro da Otan e próximo de Moscou.
Obviamente, pode ter havido alguma troca de posições ou demandas não revelada, e isso só ficará claro nos próximos dias. Mas o impasse segue. A Rússia exige a desmilitarização do vizinho, uma promessa constitucional de nunca aderir à Otan ou a blocos como a União Europeia, o reconhecimento da Crimeia que anexou em 2014 como russa e das autoproclamadas repúblicas russas do leste do país como independentes.
Em uma entrevista na segunda (8), Zelenski até se mostrou aberto a discutir as condições, mas no dia seguinte já voltou à sua retórica desafiadora, prometendo lutar até o fim. Os russos, por sua vez, pararam de falar em derrubada do governo, como no começo da ofensiva. Mas seguem em ação.
Na Ucrânia, este “até o fim” é que a questão. Se não dobraram a resistência no país, as forças de Putin avançaram nas três semanas e não parecem que irão parar com as duras sanções econômicas aplicadas à Rússia. A degradação militar de Kiev é grande, à exceção do estrago que impõe aos russos com mísseis antitanque e antiaéreos portáteis, 20 mil deles, fornecidos pelo Ocidente.
A violência continua, apesar da crescente dificuldade de se obter relatos mais confiáveis do que acontece em campo: o trabalho da imprensa está severamente limitado, e o mau tempo dificulta a observação do campo por fotos de satélites, as famosas fontes abertas de inteligência.
As avaliações militares feitas pelos EUA e pelo Reino Unido, com ampla divulgação nas TVs ocidentais, precisam, assim como divulgações em Moscou, ser lidas com desconfiança.
De seu lado, Kiev mantém as acusações de que os russos miram civis em fuga nos corredores humanitários, o que o Kremlin nega. A crise humanitária só faz piorar, com mais de 2 milhões de ucranianos fugindo do país.
O ataque que atingiu uma maternidade no sitiado porto de Mariupol, na quinta (9), segue alimentando a discussão. Após dizer que 17 pessoas haviam ficado feridas, hoje a prefeitura local disse que 3 morreram, inclusive uma menina.
Depois de vaivém de versões, Lavrov disse que o prédio estava sendo usado por combatentes ucranianos, sem apresentar provas. Ele voltou a se queixar do fornecimento de armas pelo Ocidente a Kiev, que chamou de “perigoso”.
Aí entra o terceiro eixo do impasse, as primeiras fissuras visíveis no bloco ocidental. A Polônia teve seu plano de enviar seus 28 caças soviéticos MiG-29, modelo operado pela Ucrânia, vetado pelos americanos.
Está claro em Washington e em Bruxelas, sede da Otan, que tal envio seria equivalente a entrar na guerra e arriscar um conflito entre potências nucleares. Isso já havia guiado a óbvia decisão de não tentar implantar uma zona de exclusão aérea ocidental na Ucrânia, demanda diária de Zelenski.
Os EUA tiveram de agir, despachando a vice-presidente Kamala Harris para visitar Varsóvia. Ela concedeu uma entrevista protocolar ao lado do presidente Andrzej Duda, na qual o polonês repetiu que “precisamos estar ao lado da Ucrânia” e ela falou com a voz embargada sobre “atrocidades inimagináveis” perpetradas por Moscou.
Do outro lado da fronteira, contudo, o tom foi dado pelo combativo embaixador polonês em Kiev, Bartosz Cichocki, um dos últimos ainda na cidade. Ele disse à agência Reuters que “uma zona de exclusão aérea iria acabar rapidamente com a guerra”, sem mencionar o risco de ampliar o conflito.
Para acalmar Varsóvia, Washington anunciou o deslocamento de duas baterias antiaéreas Patriot para o país, o que deve dissuadir os russos de agir mais ativamente no oeste ucraniano —basta um avião sair de rota e ser abatido para a situação piorar.
Em Antália, Lavrov foi questionado sobre o risco de uma guerra nuclear. “Não quero acreditar nisso, não acredito nisso”, disse. Putin foi o primeiro a ressuscitar o espectro, ao ameaçar forças externas que tentassem intervir na sua guerra com “consequências nunca antes experimentadas” no discurso em que anunciou a invasão, em 24 de fevereiro.
Três dias depois, ele colocou as forças nucleares russas em “modo especial de combate”, algo inexistente na doutrina do país, devido às críticas recebidas de países da Otan.
O atrito do impasse traz o risco de alguma escalada, intencional ou não, que só faz aumentar o perigo a que o mundo, para não falar dos civis ucranianos, está sujeito na crise.