Bolsonaro cria o “emendoduto”
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A gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL) passou a usar em larga escala uma manobra licitatória para dar vazão aos recursos bilionários das chamadas emendas parlamentares, distribuídas a deputados e senadores com base em critérios políticos e que dão sustentação ao governo no Congresso.
A estratégia deixa em segundo plano o planejamento, a qualidade e a fiscalização, abrindo margem para serviços precários, desvios, superfaturamentos e corrupção.
A essência para o emendoduto é o afrouxamento do controle sobre obras de pavimentação da estatal federal Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba), hoje sob o comando do centrão. Questionada, a companhia afirma que age com abordagem técnica e com interesse social.
Na manobra disseminada pela gestão Bolsonaro, as licitações são realizadas com a utilização de modelos e dados fictícios que valem para estados inteiros.
Depois que os locais são escolhidos, em geral pelos padrinhos das emendas parlamentares, as futuras obras é que devem se encaixar nas propostas vencedoras nessas licitações.
Um ministro do TCU (Tribunal de Contas da União) resumiu o mecanismo, que, segundo ele, “inverte a lógica clássica” de inicialmente realizar um projeto específico para uma via já escolhida e aí sim, em seguida, fazer uma cotação de preços com base em uma situação real.
A própria estatal admite que o expediente tem como objetivo acomodar a crescente injeção de verbas de emendas parlamentares.
O modelo adotado por Bolsonaro para atender ao centrão foi ampliado após o plenário do TCU ter dado aval à prática em meados do ano passado, apesar dos alertas de sua própria área técnica e também da CGU (Controladoria-Geral da União).
Com a liberação dos ministros do TCU, o número de licitações desse tipo na Codevasf saltou de 29 em 2020 para 99 no ano passado, um aumento de 240%.
Pela lógica da Codevasf e do TCU, o mais importante é servir de via rápida para que os congressistas possam destinar o dinheiro público, o que na prática ocorre em especial por meio das chamadas emendas de relator.
Uma série de reportagens de diferentes veículos de imprensa desde 2020 tem mostrado a falta de transparência e o uso político dessa modalidade das emendas parlamentares.
O que a Folha mostra agora é como uma manobra usada em larga escala pelo governo Bolsonaro e chancelada pelo próprio TCU tem sido fundamental para escoar essas verbas federais da caneta do relator do Orçamento no Congresso e dos ministérios até os redutos eleitorais de deputados e senadores.
Atualmente, a emenda de relator é peça-chave no jogo político em Brasília, pois é distribuída por governistas em votações importantes no Congresso. O dinheiro disponível neste ano é de R$ 16,5 bilhões.
Desde 2020, o Palácio do Planalto e aliados usam os recursos de emendas de relator para privilegiar aliados políticos, ampliar a base de apoio deles no Legislativo e, assim, evitar o início de um processo de impeachment contra Bolsonaro.
Não há uma base de dados pública com a lista de deputados e senadores beneficiados por essa negociação política, o que levou o mecanismo a ser congelado por um tempo pelo STF (Supremo Tribunal Federal) e depois liberado sob a promessa de ampliação da transparência.
A Folha, por exemplo, tem mostrado como sob Bolsonaro as emendas batem recordes e atingem em cheio seu discurso eleitoral de 2018 contra o chamado toma-lá-dá-cá, como o Congresso mantém boa parte do Orçamento sob o seu controle, como as emendas são distribuídas para privilegiar aliados do governo federal e como o jogo e a pressão das emendas mexem com as votações importantes no Congresso.
Sem critério fixo, a alocação do dinheiro segue um formato político.
O jornal O Estado de S. Paulo também publicou uma série de reportagens sobre o tema no ano passado, apontando a falta de transparência e o uso político da distribuição das emendas em troca de uma base de apoio a Bolsonaro no Congresso.
No atual modelo de obras de pavimentação da Codevasf, a aquisição dos serviços acontece por meio de uma forma simplificada de licitação, o pregão eletrônico, que ocorre online. Ele leva aos chamados contratos guarda-chuvas, que têm validade para toda a extensão dos estados.
No jargão técnico, o contrato guarda-chuva é denominado Sistema de Registro de Preços (SRP) ou ata de registro de preços. Na prática, ele joga numa mesma licitação uma série de obras que podem ter padrões completamente diferentes.
Apesar da orientação de seu próprio órgão técnico pela suspensão da manobra, os ministros do TCU votaram em maio de 2021 para dar aval ao mecanismo, com apenas algumas ressalvas e pedidos de providências para a Codevasf.
O ministro Benjamin Zymler (TCU) chegou a admitir que, nesse tipo de concorrência, as quantidades que baseiam a definição dos valores “seriam mera peça de ficção, havendo fundado risco de haver superestimativas nos serviços”.
Zymler, porém, não votou para barrar a prática. Ele seguiu o entendimento do relator do caso, Augusto Sherman Cavalcanti. Para eles, apesar dos riscos, esse sistema permite a utilização rápida dos recursos das emendas parlamentares, atendendo assim ao interesse público.
Segundo os autos do julgamento do TCU, a estatal alegou que houve aumento no volume das emendas e que há dificuldade em estabelecer quantidades e locais, pois estes são definidos posteriormente pelos congressistas.
A Codevasf argumentou que, em geral, os recursos para as emendas chegam nos últimos meses do ano, quando não há mais tempo para a realização de licitações, e os contratos guarda-chuva permitem a execução do orçamento ainda dentro do exercício.
Para a estatal, a padronização das obras é possível porque os serviços são realizados “em vias já existentes e consolidadas, com baixa trafegabilidade, onde não serão necessárias obras de arte ou específicas” e podem ser pagos por unidade de medida segundo critérios definidos em termo de referência, como largura, declividade e tráfego.
Em seu voto, o relator até ressaltou os argumentos do órgão técnico do TCU contra o mecanismo, principalmente a crítica quanto à indefinição dos locais e a falta de projetos básico e executivo.
O ministro, porém, votou a favor do pedido da estatal e disse que a adoção do modelo padrão seria “ineficaz para solucionar o impasse temporal que vem obstaculizando a execução do orçamento” quanto às emendas.
Segundo o ministro, a estratégia agora ampliada pela Codevasf “afigura-se vantajosa em face de incertezas orçamentárias”, pois as contratações com antecedência permitem a execução das obras assim que os valores são liberados.
O relator mostrou não ignorar as fragilidades da manobra e o risco de superestimativa nos serviços.
Assim, determinou a adoção de “pontos de controle” pela Codevasf, para contratações futuras. O principal deles, segundo o ministro, seria o de adotar medidas para encaixar a situação das vias reais às condições estabelecidas nos contratos guarda-chuva.
Porém, relatórios de avaliação da CGU publicados nas últimas semanas indicam que a Codevasf ainda não conseguiu mostrar como vai fazer para ajustar as condições da realidade aos preços das licitações definidos com base em dados fictícios.
Um dos principais pontos dos relatórios é sobre a dificuldade de se fazer um orçamento de obra sem conhecer as distâncias a serem percorridas para o transporte dos materiais de construção.
A lógica é a mesma de quem compra qualquer produto em sites na internet: quanto mais longe da loja física, mais caro o frete do produto. Mas se não se sabe onde a obra será feita, a brecha para superfaturamentos neste item do orçamento está aberta, segundo os técnicos da controladoria.
Em um dos estudos a CGU aponta que há desvantagem econômica nos contratos guarda-chuva para os modelos de pavimentação dos tipos TSD e CBUQ, e ganhos nas modalidades bloquetes e paralelepípedos, “justamente aquelas menos complexas”.
Em nota, a Codevasf afirma que possui sólida estrutura de governança e que atua ao lado de órgãos de controle. “As ações da companhia são empreendidas com abordagem técnica e servem ao interesse social.”
A empresa citou o relatório da CGU que aponta vantagem econômica em duas das quatro formas de pavimentação por pregões.
Questionada sobre a captura da empresa pelo centrão e pelo privilégio a aliados do governo, a empresa disse que age com “abordagem técnica”.
Afirmou também que as nomeações para cargos de direção seguem a lei das estatais e que parlamentares de diferentes partidos são atendidos na execução das emendas.
Por meio de sua assessoria de imprensa, o TCU afirmou que, ao permitir a adoção do modelo, levou em consideração o interesse público de populações carentes de pequenas localidades que usam as vias para escoar a produção e acessar serviços de saúde e escolas.
Segundo o tribunal, o mecanismo de contratação é mais célere e baseado em projetos padrão, cabendo à Codevasf escolher as vias compatíveis com o projeto licitado.
O tribunal afirma que para reduzir o risco de irregularidades fixou rigorosos mecanismos de controle e, ao final, “irá avaliar os resultados da implementação da modelagem”.