Conheça a trajetória do PM bolsonarista suspeito de molestar crianças

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Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO

Quando negociava sua entrada no Movimento Brasil Livre (MBL), Gabriel Monteiro (PL) ouviu de integrantes da cúpula do grupo uma pergunta: qual era o seu sonho? “Quero ser famoso”, respondeu o policial militar, que acabou aceito. Foi esse pacto com o grupo de direita, quatro anos atrás – ele o deixou em 2020 -, que deu ao hoje vereador ferramentas e linguagem digitais, baseadas em um sensacionalismo agressivo, que lhe renderam o mandato na Câmara do Rio e a fama que ambicionava. Hoje, aos 27 anos, Monteiro tem 23 milhões de seguidores na internet e se tornou nacionalmente conhecido – mas após ser denunciado por ex-assessores. Ele é acusado de assédios moral e sexual, estupro e de filmar relações sexuais com uma menor de 15 anos – o vídeo vazou. Agora, investigado pela Polícia Civil e pelo Legislativo carioca, que pode cassá-lo, Monteiro avalia renunciar ao mandato e tentar uma vaga na Assembleia Legislativa fluminense.

O vereador tem pelo menos 4,6 milhões de seguidores no Instagram, 6,3 milhões no YouTube, 6,9 milhões no Facebook, 413,4 mil no Twitter e 5,2 milhões no Tik Tok. Sua carreira na internet causou incômodo no comando da Polícia Militar fluminense. Após repreensões públicas, processos administrativos, faltas ao serviço e dias de detenção, ele se demitiu da corporação. Trocou em definitivo a farda pelo Palácio Pedro Ernesto. No mês passado, passou a ser investigado.

Além de assédio, há suspeita de fraude processual, uso indevido de servidores para produzir vídeos visando ao lucro e outras acusações. A lista inclui orgias com menores de idade e vídeos com crianças forjados, para serem postados nas redes sociais. As acusações foram feitas no programa Fantástico, da TV Globo, no dia 27 de março. Aliados e vereadores próximos dão como certo que Monteiro renunciará nas próximas semanas. Seria uma forma de evitar a cassação e a consequente perda de direitos políticos por oito anos.

Procurado pelo Estadão, Monteiro não quis se manifestar sobre as acusações. Em ocasiões anteriores, ele negou ter cometido crimes. Disse que não fez nada ilegal – inclusive na relação sexual que manteve com a menor.

Um dos assessores do vereador, Vinicius Hayden Witeze contou que conheceu Monteiro quando os dois integravam o MBL no Rio. A entrada do então policial militar no movimento político foi marcada por desavenças. Para se aproximar dos líderes do MBL no Estado, procurou ajuda do atual assessor e braço direito Rick Dantas. Rick já era conhecido pelos integrantes do movimento pela insistência em ocupar os quadros do MBL. Inicialmente rejeitado, o agora assessor viu em Monteiro “um Mamãe Falei carioca”. O apelido é do hoje deputado estadual Arthur do Val, que ironicamente enfrenta na Assembleia paulista um processo por comentários machistas sobre mulheres ucranianas. O Conselho de Ética aprovou a cassação, que ainda precisa ser votada pelo plenário.

Sem sucesso no MBL no Rio, Monteiro entrou em contato com a cúpula do grupo em São Paulo. A reunião com líderes do MBL na qual ele foi questionado sobre suas pretensões ocorreu cerca de seis meses antes das eleições presidenciais de 2018.

O caminho para transformar Monteiro em uma celebridade consistiu em replicar no Rio o modelo usado em São Paulo por Mamãe Falei. Incluía vídeos de “experimentos sociais” em que aparecia “ajudando” pessoas pobres e questionando políticos e lideranças de esquerda. O esquema continuou depois que virou vereador, quando Vinicius e Rick migraram para o gabinete do parlamentar. Depoimentos prestados pelos funcionários mostram que parte dos conteúdos era forjada e combinada antes da publicação. A estratégia funcionou. Aos poucos, Monteiro cresceu nas redes sociais.

Vinicius relatou ao Estadão que Monteiro faturava pelo menos R$ 300 mil mensais com a monetização dos vídeos nas redes sociais. Ao registrar sua candidatura em 2020, declarou R$ 101.197,00 em bens. De acordo com dados do Divulgacand da Justiça Eleitoral, na época da eleição, o vereador era dono de um veículo Citroën, no valor de R$ 21,5 mil, e tinha R$ 79,6 mil depositados em uma conta corrente. Segundo Vinicius, o vereador coagia os servidores a pagar do próprio bolso despesas com combustível e alimentação que fizessem nos dias de produção de vídeo e geria a equipe de forma “ditatorial”.

“No início era tudo muito amador. Quando o canal cresceu, o dinheiro aumentou e a pressão também. Ele queria vídeos todos os dias. Aí o negócio começou a complicar. Às vezes, íamos gravar com dois carros. Sempre eram os assessores. Entramos como funcionários da Câmara e viramos produtores de conteúdo para o YouTube”, conta.

Segundo Vinicius, todos os vídeos dos chamados “experimentos sociais” eram manipulados.

“Era manipulação de conteúdo. Os tais experimentos sociais eram totalmente induzidos. Usava pessoas pobres para ganhar dinheiro. Ele dizia: ou vocês fazem ou peçam para ir embora. Era uma coação. Todos os nossos gastos com comida, combustível, água eram pagos do nosso bolso. Após um ano de trabalho, fui diagnosticado com transtorno de ansiedade e burnout”, relata.

Como vereador, durante a pandemia de covid-19, Monteiro provocou protestos de médicos por supostas ações de fiscalização em unidades de saúde. Cercado de PMs ostensivamente armados que fazem a sua segurança, o político entrou em hospitais e foi até a UTIs. Tudo era gravado em vídeo e postado nas redes do parlamentar.

As “blitze informais” organizadas por Monteiro geraram oito denúncias no Conselho de Ética da Câmara. O ex-soldado tem outras cinco reclamações na Casa. Elas ainda não foram analisadas pelo colegiado.

Em outubro do ano passado, uma das incursões de Monteiro e sua equipe ocorreu no hospital psiquiátrico Instituto Municipal Philippe Pinel, em Botafogo, na zona sul da cidade. Vestidos de preto e roupas camufladas, os integrantes da equipe do vereador se apresentaram como agentes públicos e, sem a autorização da direção da unidade, filmaram pacientes internados com problemas mentais.

No vídeo postado por Monteiro nas redes sociais, o ex-PM questiona os servidores sobre a falta de atendimento e insumos na unidade. Também ignora as orientações sanitárias em meio à pandemia.

A direção do hospital reagiu a ação do vereador e emitiu uma nota pública de repúdio. “Esses homens se apresentaram como agentes públicos afirmando estarem “trabalhando”. No entanto, o que foi visto foi uma verdadeira intimidação e constrangimento de servidores em exercício de suas funções, pelo uso da força e do total desrespeito, além de nossas imagens serem indevidamente gravadas e postadas em redes sociais. Tais redes, importante ressaltar, que vêm sendo utilizadas para promover o ódio à quem trabalha incansavelmente em meio a uma pandemia para atender a população carioca com todo respeito ao ser humano e à cidadania”, reagiu a chefia da unidade.

Em outro caso, em março do ano passado, o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj) entrou com uma queixa contra Monteiro. O motivo foi uma visita do vereador à unidade de tratamento de covid-19 na Coordenadoria de Emergência Regional (CER) do Leblon. Segundo o conselho regional, o vereador youtuber invadiu a unidade sem autorização e entrou na UTI com equipamentos sem higienização, como o celular. Ao menos 20 pacientes estavam internados respirando com auxílio de ventilação mecânica.

Nas últimas semanas, após a divulgação de denúncias, Gabriel Monteiro perdeu patrocínios em seu canal no YouTube. Segundo o movimento Sleeping Giants Brasil, 19 empresas já sinalizaram que não desejam estar atreladas aos anúncios exibidos no canal do ex-policial.

Ex-coordenador-geral do MBL no Rio, o advogado conhecido como Doutor Zéma conta que Monteiro entrou no movimento com status de “estrela”. Com apoio de lideranças do MBL paulista, foi alçado a candidato a vereador.

A militância do então PM no movimento político nunca foi orgânica. Ele não participava das decisões, evitava se associar ao grupo e seguia um caminho próprio. As discordâncias e questionamentos sobre a participação dele no MBL chegaram ao ápice um ano depois. Em 2020, Monteiro alegou discordâncias com as novas diretrizes, o “MBL 3.0”, e deixou o grupo, antes da eleição. Já tinha o capital político que o levou a ser o terceiro vereador mais votado do Rio em 2020, com 60.326 votos, pelo PSD.

Quando Monteiro já não integrava o MBL, Zéma, segundo relatou, recebeu uma ligação de um empresário. Ele teria relatado um acordo com Monteiro para ceder um veículo blindado à campanha em troca de cargos comissionados fantasmas em um futuro mandato.

O veículo foi cedido. No momento do “pagamento”, Monteiro bloqueou as ligações e deixou de responder ao empresário. Um empresário que cedeu um Volkswagen Bora, ano 2008, à campanha não respondeu aos questionamentos do Estadão.

Zéma contou que o empresário, ao perceber que não conseguia mais falar com Monteiro, telefonou e pediu ajuda. “Ele me ligou e disse: Zéma, o Gabriel me ligou, me pediu meu carro blindado e ofereceu uns cargos fantasmas em troca. Eu deixei o carro e ele sumiu. Não me atende mais.” Eu falei que não ia me envolver naquilo, que ele procurasse as autoridades. Liguei para o Gabriel e somente relatei. Ele (o empresário) me disse: “O Gabriel me prometeu umas “camisas” (gíria para cargos fantasmas)”, contou.

A carreira de Monteiro na Polícia Militar do Rio durou pouco menos de cinco anos e foi marcada por desavenças entre ele e o alto comando da instituição. Ele entrou na corporação em dezembro de 2015, após passar pelo curso de formação de soldados. O primeiro caso de indisciplina foi registrado antes mesmo que o policial recém-formado fosse às ruas a serviço. Segundo a PM, ele se recusou a participar da formatura do curso preparatório e foi punido com detenção de quatro dias. Era o prenúncio do que seria a passagem de Monteiro pela PM.

A ficha disciplinar do ex-policial é recheada de anotações. Nos quatro anos na PM, Monteiro foi acusado de 70 faltas disciplinares, a maioria delas por falta ao serviço, e 16 punições que somaram 33 dias de detenção e duas repreensões administrativas. De acordo com o regulamento disciplinar da corporação, o comportamento de Gabriel Monteiro foi descrito como “mau”, a pior das cinco classificações possíveis. Enquanto era soldado, ele respondeu à Comissão de Revisão Disciplinar (CRD) por apresentar “conduta irregular, propagando críticas e palavras ofensivas contra integrantes da corporação, sem apresentar provas, em suas mídias sociais, agindo em desacordo com as normas vigentes da PMERJ”, registra a PM.

O acúmulo de transgressões culminou na expulsão de Monteiro dos quadros da PM por deserção, em agosto de 2020. Lotado à época no 34º BPM (Magé), na Baixada Fluminense, o PM faltou por oito dias consecutivos. Seguindo o regulamento interno, o comando da unidade enviou, diariamente, após o segundo dia de falta, uma viatura ao endereço do policial, repetindo a ação até completar o prazo para caracterizar a deserção. Após a expulsão ser publicada no Diário Oficial, o PM youtuber se apresentou ao batalhão alegando licença médica, apesar de o comando da unidade não ter registrado a entrega de atestado médico.

Monteiro começou a gravar vídeos supostamente inspirados em Arthur do Val três anos após entrar para a PM. À medida que a carreira de Monteiro como policial se transformava em um fiasco, sua fama e sucesso nas redes aumentavam.

As denúncias de conduta irregular na Câmara viraram uma representação no Conselho de Ética da Casa. Encaminhada à Comissão de Justiça e Redação, foi aceita em 8 de abril. O processo poderá resultar na cassação do mandato. Dois dos três parlamentares votaram pela admissibilidade: Inaldo Silva e Dr Gilberto. O presidente do Conselho de Ética, Alexandre Isquierdo, se declarou impedido.

O vereador Chico Alencar (PSOL), integrante do conselho, já se posicionou favorável ao processo contra Monteiro. De acordo com ele, os indícios contra o vereador são graves.

“Tivemos uma reunião com o procurador-geral de Justiça do Estado e mais oito promotores de diferentes procuradorias do Ministério Público. O conjunto da obra é muito contundente. Eu já tenho a convicção da necessidade de abertura de um procedimento ético disciplinar. Há elementos”, afirmou.

Estadão