Especialistas dizem que política impede discussão racional do aborto
Foto: Ian Cheibub/Reuters
Embora debater políticas relacionadas ao aborto durante o processo eleitoral e conhecer os planos dos candidatos sobre o tema sejam relevantes, existe o receio de que a polarização e interesses no resultado do pleito acabem contaminando as análises sobre o assunto.
Além disso, falar de aborto no Brasil é complexo, já que o tema é sensível e, muitas vezes, envolve convicções religiosas.
A questão voltou à baila após o ex-presidente Lula (PT), líder das pesquisas de intenção de voto para a Presidência, dizer que o aborto deveria ser um “direito de todo mundo” e defender que o assunto seja tratado como questão de saúde pública.
O líder petista foi criticado por opositores, contrários ao aborto, e por correligionários, que acreditam que abordar o tema não é estratégico diante de uma eleição que promete ser acirrada.
O ex-presidente também foi alvo de adversários políticos que aproveitaram a fala dele para mobilizar suas bases eleitorais, especialmente nas redes sociais. Em seguida, Lula recuou e disse ser contra o aborto.
O aborto é permitido no Brasil apenas em três hipóteses, segundo a legislação: quando a gravidez é resultante de um estupro, quando há risco de morte para a mulher causado pela gravidez ou se o feto for anencéfalo (má formação no cérebro).
“Este é um tema que precisaria ser debatido, se o ambiente político nos permitisse tratar com a seriedade necessária”, avalia Ivone Gebara, teóloga e professora de filosofia.
Segundo ela, o aborto precisa de uma abordagem aprofundada e deve ser analisado como uma resposta a uma demanda antiga de muitas mulheres, e não de uma forma que vire moeda eleitoral.
“Nós estamos vivendo uma polarização muito grande, com interesses muito limitados aos partidos, às eleições. É uma luta por saúde pública. Não é uma questão de ser a favor ou contra o aborto, é mais complexo. Envolve decisões sobre o próprio corpo, sobre saúde”, diz.
Avaliação similar tem a também teóloga Lusmarina Campos Garcia. Para ela, o tema do aborto está muito mal colocado no debate público brasileiro. A razão disso, diz, é a contaminação que a temática sofre “devido à pauta religiosa e à moral conservadora”.
Pastora luterana e doutora em direito pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Lusmarina afirma que a opinião pessoal do candidato sobre o aborto é algo que não pertence ao debate público, o que é importante são as propostas que o candidato tem em termos de política de saúde.
“Eleger o aborto como critério para a escolha do candidato ou candidata é localizar no ventre o destino de uma nação.”
Entretanto, com uma grande quantidade de evangélicos entre políticos e eleitores, boa parte dos candidatos evitam o tema, considerado sensível.
Este é um dos receios existentes entre os aliados do ex-presidente petista. Os correligionários temem que a abordagem de Lula afaste esse setor e dificulte uma eleição.
“A descriminalização do aborto é um tema com forte apelo moral para uma boa parcela do eleitorado que tende a gerar um veto ao candidato que a apoia”, avalia Felipe Maia, que coordena o grupo de estudos em Teoria Social da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora).
“A moralização da questão dificulta o debate, pois não admite soluções de compromisso e torna difícil a mudança de opinião”, diz.
De acordo com o especialista, justamente por isso, é compreensível que em eleições majoritárias os candidatos competitivos evitem falar. “Afinal há muitos temas que precisam ser discutidos e essa é uma questão que depende mais do Poder Legislativo e até do Judiciário que do Executivo.”
Ele explica que candidatos ao Legislativo em eleições proporcionais são “compreensivelmente mais abertos a essa discussão”.
Apesar disso, embora entenda o pragmatismo, Maia pondera que é de fato ruim que os candidatos não digam nada a respeito desse tema.
“Seria positivo que o tema fosse debatido por um enquadramento menos dicotômico e menos moralizante, mas essa tem sido a dinâmica não só no Brasil; a conformação do enquadramento é parte da disputa que existe na sociedade e isso se reflete nas eleições”, afirma.
Como antídoto, ele lembra que outras experiências no mundo apontam que é possível que bons argumentos, amparados em movimentos sociais, consigam mudar a forma de ver o problema.
Odja Barros, pastora Batista e teóloga discorda que a polarização atrapalhe o debate sobre o aborto. Ela não considera que o ex-presidente Lula tenha errado ao tocar no assunto.
“Pelo contrário, é importante e urgente provocar os demais candidatos ditos progressistas que apresentem suas posições sobre este e outros temas evitados nos processos eleitorais.”
“Me interessa conhecer a posição dos candidatos sobre a questão do aborto, porque sei como esse tema afeta a vida das mulheres, sobretudo as mais desprotegidas social e economicamente”, diz.
Odja considera o aborto como uma questão de saúde pública e de direito à vida das mulheres, o que, em sua avaliação, torna falar sobre ele durante o pleito não apenas adequado, mas necessário.
Ela afirma que mulheres pobres, negras e periféricas estão morrendo. “Cabe ao Estado, através de políticas públicas, apresentar caminhos que enfrentem esse problema”. “É muito ruim para a mulher eleitora brasileira, sobretudo, não saber o pensam as candidaturas.”
A ginecologista e professora da faculdade de medicina da Universidade Federal de Uberlândia Helena Paro também considera fundamental que o tema seja debatido durante o processo eleitoral. “Se não for agora será quando?”, questiona.
De acordo com a médica, o aborto é uma questão de saúde pública e nunca deveria ter sido tratado no âmbito da Justiça e da segurança pública.
Ela explica que, desde a década de 90, mecanismos internacionais abordam a questão do aborto como um tema de direitos humanos e de acesso a saúde.
“A própria Organização Mundial de Saúde atualizou as suas recomendações relativas ao cuidado e ao tratamento ao aborto e a OMS foi muito enfática em dizer que o aborto é um cuidado em saúde e retirado dos códigos penais dos países”, afirma.
Ela lembra que grupos mais vulnerabilizados sofrem mais quando precisam lidar com os desafios relacionados ao aborto.
Helena cita as crianças, adolescentes, mulheres em situação de violência e com questões econômicas desfavoráveis. “Incluindo os homens trans, que podem ter uma gravidez indesejada.”
A médica afirma que existem estimativas que variam de meio milhão a 1 milhão de abortos cladestinos por ano no país, apesar da criminalização.
“Quando nós vamos discutir o aborto no Brasil?”, volta a questionar. Se não debatermos em campanha, a gente vai esperar depois de eleitos? Sem um compromisso com dos candidatos?”