Grupos de Telegram bolsonaristas espalham mentiras absurdas livremente
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A eleição presidencial de 2018 foi um divisor de águas porque despertou as autoridades para os estragos que a desinformação espalhada em larga escala nas redes sociais pode causar na disputa eleitoral e nas relações sociais de um modo geral. Durante a campanha, a Justiça teve de se defrontar com a proliferação de fake news variadas, a grande maioria difundida por apoiadores de Jair Bolsonaro, como a suposta existência de um “kit gay” que seria distribuído nas escolas pelo candidato Fernando Haddad (PT); teorias da conspiração, como a de que as urnas completavam o voto no petista quando o eleitor digitava o “1”; e montagens malfeitas, como a que colocava Adélio Bispo, autor da facada contra Bolsonaro, como militante em ato de campanha de Lula.
A perplexidade com a descoberta da nova ameaça foi dando lugar então à busca de meios para mitigar o fenômeno, tanto pelo Judiciário quanto pelo Legislativo — este, com atraso, discute agora um projeto de lei para combater fake news. Alguns avanços foram alcançados, sobretudo a partir do cerco da Justiça às plataformas. Exemplo disso foi o WhatsApp, que criou mecanismos eficientes de contenção de notícias falsas. Agora, as atenções estão todas voltadas para o Telegram, aplicativo que mais cresce no país e que negocia com o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) as medidas que adotará para impedir o mau uso da plataforma na eleição deste ano. Em 2018, apenas 15% dos smartphones no país tinham o aplicativo instalado. Em janeiro de 2022, esse número já chegava a 60% dos celulares, segundo pesquisa da Panorama Mobile Time/Opinion Box.
A preocupação do TSE se justifica. Nas últimas semanas, a reportagem de VEJA mergulhou em alguns dos maiores grupos ativos no país do Telegram nos dias em que episódios relevantes agitaram a cena política nacional, como a quase desistência do presidenciável João Doria (PSDB), o lançamento da pré-candidatura de Bolsonaro, a mudança de partido de Sergio Moro , o aniversário do golpe militar e a novela envolvendo a colocação de uma tornozeleira no deputado bolsonarista Daniel Silveira (PTB-RJ). Na imensa maioria, tais grupos são formados por bolsonaristas e alcançam 365 000 usuários. A constatação foi que, nesse ambiente, fluem sem qualquer empecilho milhares de imagens, vídeos e mensagens de texto com tudo o que preocupa a Justiça — ataques infundados às urnas eletrônicas, pesquisas de intenção de voto falsas e pedidos de fechamento das instituições democráticas e de volta da ditadura. Há também novas versões do “kit gay”, como a tese de que a apresentadora Xuxa Meneghel é “pedófila”, que o PT e a esquerda são adeptos do “satanismo” e que as pessoas LGBTQIA+ são “depravadas” e conspiram para destruir as famílias.
O forte apelo à pauta de costumes, aliás, é um dos principais elementos de aglutinação de bolsonaristas neste período pré-eleitoral — e não é por acaso. “Como vimos em 2018, as fake news que tocam em questões moralistas e de costumes têm mais chance de mudar votos”, afirma David Nemer, professor no departamento de Estudos de Mídia na Universidade de Virginia e pesquisador em Harvard. Nos grupos bolsonaristas de Telegram, conteúdos assim dividem espaço com as fake news sobre vacinas e novas e velhas teorias conspiratórias, como a de que “sua Smart TV vigia você!”.
No campo político, um dos principais alvos dos ataques disparados a partir desse submundo é o STF. Segundo o Monitor de Telegram, desenvolvido no Departamento de Ciência da Computação da UFMG sob coordenação do professor Fabrício Benevenuto, de 27 de março a 2 de abril, das trinta imagens mais compartilhadas nos 230 grupos acompanhados pela ferramenta, sete envolviam a decisão do ministro Alexandre de Moraes de colocar tornozeleira eletrônica em Daniel Silveira, predominando ataques ao magistrado e ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) — curiosamente, um dos principais aliados de Bolsonaro, mas que deixou a turba furiosa por não ter enfrentado o STF. A mensagem de texto mais compartilhada no período celebrava a pré-candidatura do presidente à reeleição. Na categoria de vídeos, o que mais circulou foi um gravado por Tarcísio de Freitas para apresentar o novo sistema de segurança na pista do Aeroporto de Congonhas, às vésperas de ele deixar o Ministério da Infraestrutura para concorrer ao governo de São Paulo pelo Republicanos.
Em meio à miríade de barbaridades e baixarias que circulam nesse meio, a prioridade do TSE é o combate à desinformação capaz de desacreditar o processo eleitoral. O que mais preocupa são as mensagens contra as urnas eletrônicas, frequentes nos grupos. Em um vídeo já desmentido, mas que continua fazendo sucesso no Telegram, Naomi Yamaguchi (irmã da médica Nise, famosa por defender tratamentos ineficazes contra a Covid-19 e agora pré-candidata ao Senado por São Paulo) entrevista um suposto especialista, não identificado, sobre “fraudes” na contagem de votos em 2014. Outra mensagem recorrente diz: “Aqui estão os documentos que ele (Moraes) mandou tirar do Telegram do presidente. São a prova de que o sistema eleitoral FOI INVADIDO SIM, o que pode causar FRAUDE NAS ELEIÇÕES deste ano, como fizeram nos EUA”. Logo abaixo vêm os links para download do inquérito da Polícia Federal que apurou um ataque hacker ao TSE em 2018. O episódio não pôs em risco o resultado da eleição, mas a investigação foi vazada por Bolsonaro assim mesmo, a fim de municiar seus seguidores com suspeitas sobre o processo eleitoral e, com isso, preparar terreno para uma eventual contestação do resultado. Moraes, responsável por inquéritos sobre fake news no STF, mandou o Telegram apagar o material do canal oficial de Bolsonaro, o que o aplicativo só cumpriu depois que o ministro determinou seu bloqueio no Brasil. O inquérito vazado, no entanto, continua sendo republicado livremente.
O Telegram, de fato, demorou a dar atenção às autoridades brasileiras. Mas com o bloqueio determinado por Moraes, a relação mudou de patamar. Além de apagar publicações, outro desdobramento para evitar a drástica decisão foi a nomeação pelo Telegram de um representante no país, o advogado Alan Campos Elias Thomaz. O aplicativo vinha escapando das comunicações e decisões da Justiça porque não tem escritório no Brasil. Thomaz se reuniu com o TSE no fim de março e assinou um termo de adesão ao programa de combate à desinformação, o que foi considerado um avanço pelos ministros. A Corte e a empresa estão finalizando o memorando de entendimento com as ações concretas que deverão ser adotadas. Uma das exigências deve ser a criação de uma linha direta para o tribunal denunciar ao Telegram mensagens problemáticas. Caberá ao aplicativo analisar cada caso e decidir pela retirada do ar e até pelo bloqueio de perfis com comportamento inautêntico (que podem ser robôs).
Vale ressaltar que o Telegram é hoje o retardatário das plataformas em relação ao compromisso com o jogo limpo nas eleições. O TSE já faz algo semelhante com outras empresas. Nas eleições municipais de 2020, o YouTube suspendeu dessa forma mais de 2 000 contas inautênticas. Mecanismos como esse podem ser importantes para que se tirem do ar rapidamente, após as eleições, eventuais convocações para ações violentas contra a Justiça Eleitoral, por exemplo, evitando que ocorra aqui algo semelhante à invasão do Capitólio, nos EUA, organizada pelas redes sociais. “Embora setores mais extremistas sejam minoria, não há razão para subestimar o perigo de seus discursos”, alerta o pesquisador David Nemer, que monitora 73 grupos no WhatsApp e dezesseis no Telegram. Além disso, uma pesquisa do DataSenado mostrou, em 2019, que 45% dos entrevistados disseram que as redes sociais ajudaram na definição de voto no ano anterior. “A busca de um debate público saudável, livre de comportamentos inautênticos e de práticas manipulativas que prejudicam o direito à informação adequada e corroem as bases do sistema democrático, só pode ser efetiva com um engajamento ativo das plataformas digitais”, afirmou a VEJA o presidente do TSE, ministro Edson Fachin.
O receio dos especialistas é que os acordos firmados com as redes sociais não sejam suficientes para barrar a avalanche de desinformação — fenômeno que deve se intensificar até outubro. Um relatório de pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD), da UFBA, comparou os termos assinados pelo TSE com oito plataformas (não incluído o Telegram) e identificou pontos fracos. Um aspecto negativo é que o trabalho mais pesado e difícil, o de identificar as fake news, fica sob responsabilidade da própria Justiça. “Pense que há uma eleição nacional e outras regionais em um país do tamanho do Brasil: será impossível o TSE e os tribunais regionais fazerem esse monitoramento”, diz Rodrigo Carreiro, um dos autores do estudo. Na tentativa de apertar esse cerco, Fachin destaca que os memorandos de entendimento podem ser “objetos de aditivos constantes, em um exercício de aperfeiçoamento contínuo”. Ou seja: novas exigências podem ser feitas.
O crescimento vertiginoso do bolsonarismo no Telegram, aliás, é uma consequência do cerco que se formou a partir de 2018 às plataformas mais populares. Até alguns anos atrás, o WhatsApp não impunha limites ao número de destinatários de uma mensagem nem ao tamanho dos grupos (hoje, um grupo pode ter até 256 participantes). O Telegram, por outro lado, permite grupos com até 200 000 pessoas e um número ilimitado de inscritos nos canais de transmissão, aqueles em que somente o administrador pode enviar mensagens. O pico histórico de mensagens em grupos políticos no Telegram foi registrado no início de 2021, segundo uma pesquisa da UFMG, período que coincidiu com a atualização das políticas de privacidade do WhatsApp e com a criação do canal oficial de Bolsonaro. Ali, os usuários aproveitam o espaço a fim de divulgar para grandes públicos links que direcionam para outros sites e plataformas, principalmente o YouTube (onde a audiência gera lucro para os donos dos canais). O Telegram funciona, assim, como ponta de lança na estratégia de comunicação do bolsonarismo. “O WhatsApp foi tomando medidas, ao passo que o Telegram era ‘terra de ninguém’”, diz Maria Paula Almada, pesquisadora da UFBA.
Após a crise com o STF, no mês passado, uma mensagem assinada pelo CEO do Telegram, Pavel Durov, listou sete providências que a empresa pretende tomar para combater desinformação no Brasil, como monitorar os 100 canais mais populares no país, classificar como “imprecisas” publicações que contenham desinformação e proibir que usuários banidos por espalhar fake news criem novos canais — ação que atinge em cheio o blogueiro Allan dos Santos, pivô da decisão de Moraes. A julgar pelo histórico do Telegram cheio de confusões em todo o mundo, a promessa de Durov precisa ser olhada com um certo ceticismo. O serviço já foi banido ou suspenso em mais de uma dezena de países, sob a alegação de que grupos extremistas e criminosos o utilizam para se articular. Em 2015, a empresa passou a ser pressionada a tomar medidas mais duras após surgirem evidências de que o aplicativo era um dos preferidos do grupo terrorista Estado Islâmico.
Criado em 2013 pelos irmãos russos Pavel e Nikolai Durov, rapidamente o Telegram entrou em rota de colisão com o governo do país após usuários lançarem mão do aplicativo para atacar Vladimir Putin. O Telegram foi bloqueado durante três anos por descumprir uma lei local que exigia o armazenamento das mensagens dos usuários e o fornecimento de seu conteúdo para investigações policiais. A pressão política fez os Durov levarem a sede do Telegram para os Emirados Árabes Unidos. A estimativa é que a plataforma tenha 500 milhões de usuários no mundo. O sucesso do app levou Pavel Durov a ser incluído na lista de homens mais ricos do mundo da revista Forbes em 2021, com uma fortuna estimada em 15 bilhões de dólares.
Além do movimento contra Putin, o Telegram esteve por trás de insurreições digitais no Irã e na China, que mantêm bloqueios até hoje. Na Alemanha, mais de sessenta grupos foram desativados em fevereiro por disseminar discurso antissemita. Por aqui, onde a polarização política cria campo fértil para notícias falsas, discursos de ódio e pregações antidemocráticas, o grande desafio das autoridades será responder com agilidade às ameaças para garantir um pleito civilizado. Sinais de alerta é que não faltam. E está claro que não será uma batalha fácil.