Le Pen assusta o mundo ao mostrar chance de governar a França
Foto: Philippe Lopez/AFP
A oito dias da eleição presidencial, Emmanuel Macron apelou. Ele, que construiu a sua carreira em cima da promessa de ruptura com a política tradicional, recheou o seu comício de sábado (2), um dos pontos altos da sua campanha de reeleição, com referências à esquerda.
Lembrou a mensagem de François Mitterrand, figura emblemática dos socialistas no século 20, e roubou trechos do discurso do candidato trotskista Philippe Poutou, personagem folclórico da política nacional.
Como tudo no macronismo, o movimento do presidente foi calculado e os seus objetivos, previamente demarcados. O primeiro, mais evidente, é estabelecer um diálogo direto com os militantes de esquerda. O principal líder dessa corrente, Jean-Luc Mélenchon, terceiro nas sondagens, já indicou que vai consultar os seus apoiadores se for eliminado no primeiro turno. Em 2017, ele se recusou a apoiar Macron contra Marine Le Pen.
O segundo objetivo é mais subversivo e revelador da realidade política francesa. Com a sua guinada retórica, Macron também visa as classes populares, que formam o núcleo duro do eleitorado de Le Pen. A semana passada foi marcada pela sondagem que colocou a candidata da extrema direita a três pontos de Macron num eventual segundo turno. Um resultado histórico, fruto de uma bem-sucedida estratégia de normalização.
Para fugir da barulheira provocada pela emergência do seu rival Eric Zemmour, Le Pen trocou a fobia migratória pelo discurso social e adentrou numa campanha personalista e paroquial. Ela aparece passeando a cavalo e conversando com os artesãos da “França profunda”. Entre suas tiradas sobre o poder de compra, a sua bandeira de campanha, ela revela detalhes da sua vida de quinquagenária solteira, criadora de gatos e apreciadora de cigarro eletrônico.
A filha de Jean-Marie Le Pen, negacionista do Holocausto, que outrora encarnava todos os males da Nação, virou a vizinha do lado e chegou ao segundo lugar no ranking de personalidades políticas favoritas dos franceses.
Enquanto isso, o seu programa extremista permanece intacto. A sua promessa de fazer um referendo nos primeiros dias de seu eventual governo acerca de uma lei sobre a identidade francesa, o que a permitiria contornar os altos tribunais do país, é vista por juristas como uma primeira tentativa de instaurar o modelo iliberal do húngaro Viktor Orbán.
A vitória de Le Pen ainda é uma improbabilidade estatística, mas a resiliência da sua candidatura acaba com o mito da tecnocracia centrista como solução contra o populismo. Eleito nas ruínas da social-democracia, Macron fracassou na tarefa de construir um novo sistema político.
Verticalizado e centralizado, seu partido não conseguiu criar bases regionais e aprofundou o abismo entre a política local e os dirigentes nacionais. O vazio foi ocupado pelos candidatos antissistema, que organizaram a sociedade transtornada pela fúria dos Coletes Amarelos e as angústias da tripla crise militar, sanitária e climática.
A dinâmica desta eleição mostra que a imagem de Macron como um presidente desconectado da população não é uma simples fantasia antielitista. Ela é a manifestação de uma patologia grave da democracia francesa.