Lira atuou para aliado vender kits de robótica a escolas sem água
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A intervenção do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para liberar recursos federais para a compra de equipamentos de robótica foi confirmada à Folha pela secretária de Educação de Flexeiras, uma das cidades de Alagoas beneficiadas.
Segundo Maria José Gomes, a prefeitura também contou com a consultoria de uma assessora parlamentar municipal ligada ao vereador João Catunda, aliado de Lira e filho do dono da empresa que forneceu os kits.
Essa consultora teria colaborado nos trâmites burocráticos para a liberação dos recursos.
Como a Folha revelou, Flexeiras é uma das sete cidades alagoanas que já receberam, no total, R$ 26 milhões de recursos do MEC (Ministério da Educação) para compra de kits de robótica, apesar de vivenciar graves deficiências na oferta escolar.
Todas as prefeituras contrataram a mesma empresa da família do vereador aliado de Lira para o fornecimento dos equipamentos e cursos de formação de professores.
A secretária disse à Folha que o município preencheu as informações do sistema do governo para solicitar transferências, mas a velocidade para liberação do recurso só foi possível com a ajuda de Lira.
“Para chegar na execução, a gente precisou de um parlamentar, o Arthur Lira”, disse.
Segundo a secretária, ela própria manteve contatos com uma pessoa da assessoria de Lira, além do envolvimento da prefeita Silvana Maria Cavalcante da Costa Pinto (PP) na articulação com o parlamentar.
A reportagem esteve na Secretaria de Educação de Flexeiras na terça-feira (5), quando entrevistou a gestora. “Aqui em Flexeiras o forte mesmo é o Arthur Lira”, disse ela.
Maria José Gomes afirmou que é comum esse tipo de intervenção. Ela disse acreditar que os valores que custearam os kits são de emendas do presidente da Câmara.
Questionado sobre a afirmação da secretária, Lira afirmou, em nota, que, “desde 1978, a família Lira participa ativamente da vida política de Flexeiras”. Segundo ele, “os recursos para as prefeituras são liberados através das emendas de bancada seguindo seu curso regular”.
Os dados oficiais, no entanto, mostram que essas transferências foram inscritas como emendas de relator do Orçamento, tanto para Flexeiras quanto para os outros municípios beneficiados com esse dinheiro para robótica.
Lira é responsável por controlar em Brasília a distribuição de parte bilionária desses recursos sobre os quais há pouca transparência.
A prefeita de Flexeiras foi procurada, mas não respondeu. Silvana já está em seu quinto mandato à frente Executivo municipal e sua família administra a cidade ininterruptamente desde 1983.
Mesmo nas emendas de relator do Orçamento quem decide se libera o dinheiro, quando e para quem, é o FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), a partir de anuência da área econômica do governo Jair Bolsonaro (PL).
Esse processo deve seguir critério técnicos, que não foram respeitados, uma vez que 68% de tudo que foi pago no país nesta rúbrica até o fim de março ficou concentrado em sete cidades alagoanas.
Ligado ao MEC, o FNDE é controlado pelo centrão —o presidente do fundo, Marcelo Lopes da Ponte, era chefe de gabinete de Ciro Nogueira (PP-PI), ministro da Casa Civil de Bolsonaro, aliado de Lira. Os dois comandam o PP, legenda que dá sustentação ao governo.
Questionado sobre o caso, MEC e FNDE não responderam.
Sob o centrão, o fundo virou uma espécie de balcão político. A Prefeitura de Flexeiras recebeu R$ 1,8 milhão para a compra dos kits de robótica. Assim como também ocorreu em outras cidades, ela foi atendida com velocidade incomum.
O empenho, primeiro passo da execução orçamentária e que reserva o recurso, saiu em 16 de dezembro passado. O contrato com a empresa foi assinado em 8 de março, a partir da adesão a uma ata de registro de preços elaborada por outro município. O dinheiro caiu na conta do município no dia 22 do mesmo mês.
A empresa fornecedora dos kits de robótica é a Megalic, de Maceió. A Megalic está em nome de Roberta Lins Costa Melo e Edmundo Catunda, pai do vereador João Catunda (de saída do PSD) e aliado de Lira.
O vereador nega que teve qualquer relação com as prefeituras que contrataram a empresa do pai.
Mas a própria secretária de Educação de Flexeiras disse que o município recebeu e continua receber a consultoria de uma pessoa externa para as burocracias do sistema: essa consultora é uma assessora na Câmara de Maceió ligada a Catunda.
Segundo a secretária, a própria prefeita é quem teria repassado a indicação dessa consultora, apresentado-a como “Catharyna Catunda”. Foi a gestora quem repassou à reportagem o contato da consultora.
Trata-se Catharyna Davilla Duarte Barbosa, assessora parlamentar na Mesa da Câmara municipal de Maceió desde 2021, com atuação junto à Comissão de Educação. O vereador João Catunda é presidente desta Comissão de Educação e também faz parte da Mesa, como 3º secretário.
“Foi uma assessora que a gente contratou para fazer esse suporte do PAR [Plano de Ações Articuladas, sistema do FNDE], inclusive os contatos que a gente tem é com ela”, disse a secretária Maria José Gomes à reportagem.
“A prefeita que indicou. Fez essa assessoria para nos ajudar. Tudo iniciou com a questão da robótica. Agora está ajudando com a questão da creche”, explicou.
A gestora da Educação disse nunca ter visto os kits, não saber a marca dos robôs nem o nome da empresa fornecedora. Apesar de receber kits de robótica, a cidade tem uma obra creche paralisada na rua da secretaria de Educação, no centro da cidade.
Maria José Gomes disse que, além de ajudar na questão dos kits, Catharyna estaria colaborando para destravar novos recursos federais para conclusão da obra.
Catunda e Catharyna são amigos pessoais e dividem fotos nas redes sociais. Também pelas redes é possível comprovar a atuação profissional próxima para o vereador e em temas relacionados ao FNDE.
Em postagem de 27 de setembro, ela aparece em reunião com municípios alagoanos com o computador aberto no site do Simec (Sistema Integrado de Monitoramento Execução e Controle do Ministério da Educação), interface dos municípios com o MEC no âmbito das transferências.
Ela participa de reuniões com o vereador e acompanhou de perto o ex-ministro da Educação Milton Ribeiro na visita que ele e integrantes do FNDE fizeram a Maceió em novembro passado. O encontro foi organizado por Catunda e Arthur Lira para reunir prefeituras.
Na quarta-feira (6), ao ser questionado pela Folha, o vereador desconversou sobre quem era Catharyna, qual a relação dos dois e atuação dela.
“Meu contato com ela é muito pouco, a vi algumas vezes (…) Pouco com relação trabalho, ela é muito amiga da minha esposa, temos amigos em comum”, disse ele, ressaltando que desconhecia qualquer trabalho de consultoria feito por ela.
Procurado novamente na quinta, Catunda disse ter se equivocado. “Não trabalha diretamente para mim ou para o meu gabinete”, declarou.
Catharyna, que é advogada, afirmou à reportagem por mensagem de texto que nunca trabalhou com consultoria educacional a municípios, nem na liberação de recursos. Disse prestar assessoria jurídica a prefeituras desde 2016.
Ela diz ainda não conhecer Arthur Lira e não trabalhar diretamente para João Catunda, mas sim para a Comissão de Educação a partir da sua nomeação pela mesa diretora da Câmara Municipal.
Catharyna negou ter atuado na liberação de recursos para kits de robótica. Questionado sobre o que disse a secretária, a assessora afirmou que “a pessoa da prefeitura de Flexeiras está equivocada”.
Segundo a Câmara da capital alagoana, seu salário líquido na Casa, em março, foi de R$ 4.138,25. Ela é nomeada em cargo comissionado.
Cada kit de robótoca foi adquirido pelas prefeituras da empresa do pai do vereador saiu por R$ 14 mil, valor muito superior ao praticado no mercado e ao de produtos de ponta de nível internacional.
Edmundo Catunda encaminhou nota à reportagem em que diz que a atuação da empresa é exclusivamente comercial, sem cunho político.
Municípios que contrataram kits de robótica com a empresa de aliados de Lira concentram 79% do total gasto pelo governo Bolsonaro com essas despesas em 2021 em todo o país. Isso inclui as sete cidades alagoanas e outras duas pernambucanas também contempladas.
O percentual representa R$ 31 milhões de um montante total de R$ 39 milhões. Os valores se referem somente à rubrica específica para compra de equipamentos e mobiliário, na qual se inclui o gasto com kits de robótica.
Em 28 de março o ministro Milton Ribeiro foi exonerado após vir à tona a existência de um balcão de negócios na pasta, com participação de pastores evangélicos sem vínculo oficial com o poder público e acusações de cobrança de propina até em barra de ouro.
Ribeiro perdeu o cargo sete dias após a Folha revelar áudio em que ele dizia que privilegiava um dos pastores lobistas a mando de Bolsonaro. A existência da atuação extraoficial dos pastores foi revelada pelo jornal O Estado de S. Paulo.