Proverbial ignorância de Carlos Bolsonaro é conhecida na Câmara do Rio
Foto: Divulgação/CMRJ
Em uma manhã de abril de 2021, vereadores e convidados participavam de uma audiência pública da comissão de ciência e tecnologia da Câmara Municipal do Rio de Janeiro para discutir dois projetos de lei sobre proteção de dados no âmbito do município.
Tudo transcorria normalmente até que um conhecido vereador implicou com o termo “autodeterminação informativa”, que consta na Lei Geral de Proteção de Dados e que, resumidamente, diz respeito ao poder de cada cidadão controlar seus dados pessoais.
“Autodeterminação, você vê por aí gente que inclusive se autodenomina tigre, leão, jacaré, papagaio, periquito”, disse Carlos Bolsonaro (Republicanos), assegurando que sua fala não era uma piada.
“A partir do momento que você coloca isso, ignorando legislações superiores que caracterizam o sexo da pessoa como homem ou mulher, x, y, baseado na ciência, […] fica algo muito vago, porque coloca em situação delicada tanto a pessoa que se autodetermina como as pessoas que estão ao redor dela”, completou.
Em seguida, o procurador do estado Rodrigo Borges Valadão pediu a palavra para tranquilizar o filho do presidente Jair Bolsonaro (PL) e explicar que a autodeterminação informacional nada tem a ver com orientação política ou sexual.
O vereador agradeceu, mas continuou com a pulga atrás da orelha: “A gente entende que, no Brasil, quando se toca em determinados assuntos, abre-se margem para diversas interpretações”.
O episódio, que ganhou as redes sociais e levou Carlos a se manifestar (“Confundi porcaria alguma”), é ilustrativo das prioridades de seu mandato na Câmara Municipal. Duas se destacam: se posicionar sobre temas ideológicos caros para a direita conservadora e defender o pai.
São normalmente nessas situações que Carlos, discreto e pouco interativo nas sessões, quebra o silêncio. Desde o início da pandemia da Covid-19, os trabalhos na Câmara Municipal têm acontecido de forma híbrida, possibilitando a participação virtual. Em geral, o filho do presidente participa das votações, mas raramente liga a própria câmera.
Vereadores desconfiam que, em certos dias, a equipe de Carlos acompanha remotamente as sessões em seu lugar, para participar das votações e avisá-lo quando sua intervenção parecer importante. Isso porque não são raras suas viagens a Brasília, mesmo em dias de trabalho na Câmara Municipal.
Carlos esteve no Palácio do Planalto em ao menos 32 dias entre abril de 2020, no início da pandemia, e junho de 2021. Os registros de entrada e saída do vereador foram informados pela Casa Civil da Presidência à CPI da Covid, em junho do ano passado, no contexto da investigação do chamado “gabinete paralelo”.
Em ao menos 14 dias, havia sessão na Câmara Municipal do Rio. Elas ocorrem às terças, quartas e quintas, das 14h às 18h, podendo ser estendidas. Sessões extraordinárias também podem ser convocadas em outros dias e horários.
No dia 22 de abril de 2021, por exemplo, há nove registros de Carlos Bolsonaro no Palácio do Planalto, entre as 10h53 e as 20h. Seu pai discursava por videoconferência na Cúpula de Líderes sobre o Clima.
No mesmo dia, a primeira sessão na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro teve início às 10h15. A última, às 20h25. Carlos Bolsonaro marcou presença em todas e participou das votações remotamente, mesmo em meio a um dia cheio no Planalto.
Em 28 de abril, dia seguinte à instalação da CPI da Covid no Senado, Carlos esteve mais uma vez no palácio, com nove registros de entrada e saída entre as 10h21 e as 19h06. Naquele dia, a sessão da Câmara Municipal começou às 14h30 e terminou às 16h25.
Desde o ano passado, o GSI (Gabinete de Segurança Institucional) se nega a fornecer informações sobre as entradas no Planalto solicitadas por meio da Lei de Acesso à Informação. Assim, não há dados públicos a respeito de quantas vezes Carlos Bolsonaro esteve no local entre julho de 2021 e o momento presente.
Em dezembro, o UOL mostrou que o vereador registrou presença em sessão na Câmara Municipal enquanto acompanhava a gravação de um vídeo no gabinete de Jair Bolsonaro.
As visitas ao Planalto, assim como a forte influência sobre a estratégia de comunicação do pai, renderam a Carlos a alcunha de “vereador federal” dada por críticos e opositores.
Porém as críticas geraram uma consequência prática somente após sua viagem à Rússia na comitiva presidencial, que ocorreu mesmo sem o filho do presidente ter um cargo oficial no governo federal.
No dia 9 de março, algumas semanas após o retorno do vereador, a Mesa Diretora da Câmara Municipal publicou uma resolução que torna obrigatória a abertura da câmera de vídeo para qualquer parlamentar que deseje falar durante a sessão. Nos demais momentos, o uso do equipamento passou a ser recomendado.
A expectativa é de que em breve os trabalhos voltem a acontecer presencialmente na Casa, com o arrefecimento da transmissão da Covid-19.
A presença de Carlos na viagem à Rússia reforçou a preocupação de ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) e do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) sobre uma possível interferência internacional na eleição brasileira deste ano.
Carlos é diretamente ligado a integrantes do chamado “gabinete do ódio”, termo usado para designar um grupo de assessores da Presidência com atuação forte nas redes sociais, alvo de inquéritos no Supremo que miram conteúdos falsos e antidemocráticos.
A partir de um pedido do senador Randolfe Rodrigues (Rede), o ministro Alexandre de Moraes solicitou ao Planalto informações sobre a participação do vereador na viagem, no âmbito do inquérito que investiga uma milícia digital.
Para justificar o requerimento das informações, Moraes citou o fato de o senador ter mencionado que a “Rússia é origem de notórios ataques hackers relacionados às votações do Brexit, em 2016, e às eleições nos Estados Unidos, em 2016 e 2020”.
Um dos principais conselheiros do presidente, Carlos deve tocar as mídias digitais da campanha à reeleição, assim como fez em 2018, quando ficou afastado da Câmara por cerca de quatro meses.
O governo federal e a Câmara Municipal do Rio disseram que não houve gastos com a ida do vereador ao Leste Europeu. Carlos não explicou quem custeou sua viagem.
O Legislativo municipal informou ao ministro que o vereador comunicou à Casa sobre sua viagem três dias antes de embarcar. A secretária-geral da Mesa Diretora da Câmara, Tania Martinez de Almeida, disse que o regimento não exige autorização prévia para viagens internacionais que não sejam enquadradas como “missão oficial ou gastos para a Casa”.
Mais uma vez, em meio a afazeres junto ao pai, Carlos registrou presença nas sessões e votou remotamente.
Durante sessão no dia 15 de março, o vereador Chico Alencar (PSOL) cobrou explicações do colega sobre a ida à Rússia. Carlos não esclareceu as circunstâncias da viagem, e respondeu que não descumpriu o regimento interno da Casa. “Se não gostou pisa no chão, pisa nas calças e vamos adiante”, disse.
Desde 2018 o filho do presidente demonstra a aliados insatisfação com a atuação na Câmara e, inclusive, chegou a cogitar abrir mão da reeleição em 2020.
Naquele ano, poucos meses antes das eleições e em meio ao avanço das investigações sobre o uso de funcionários fantasmas em seu gabinete, caso revelado pela Folha, Carlos chegou a escrever no Twitter que poderia “ter chegado o momento de um novo movimento pessoal”.
No fim, se candidatou mais uma vez para o cargo que ocupa desde os 18 anos. Vereadores ouvidos pela reportagem dizem que Carlos parece desgostoso e pouco interessado nos trabalhos na Casa. Um deles observou que o filho de Jair Bolsonaro pouco se engaja nos próprios projetos de lei, e não costuma se dedicar a obter votos com colegas.
No dia 17 de março, por exemplo, um dos projetos assinados por Carlos, contra o passaporte da vacina, recebeu emenda e foi retirado de pauta, o que gerou manifestação nas galerias de pessoas favoráveis ao texto. O vereador Rogério Amorim (PSL), que também assina o projeto, pediu a palavra e criticou o que chamou de manobra para evitar a votação. Carlos nada disse.
Enquanto isso, outros projetos apresentados pelo vereador nesta legislatura seguem de fora da ordem do dia. Entre eles, dois têm como alvo pessoas transexuais. Um propõe que o uso de banheiros públicos seja restrito de acordo com o sexo biológico. O outro busca proibir que uma mulher transexual, por exemplo, participe como mulher em competições vinculadas de alguma forma à prefeitura.
Procurado pela Folha nas últimas semanas, Carlos não respondeu aos questionamentos.