Terceira via mergulha na autofagia
Foto: Arquivo/O Globo
Ammut ou Amem-me era um demônio egípcio, conhecida como “A Devoradora” e a “Grande Morte”, com cabeça de crocodilo, corpo metade leão, metade leopardo e traseiro de hipopótamo, todos animais ferozes da África. Na mitologia egípcia, segundo o Livro dos Mortos, era um demônio de punição, devoradora de homens, dos mortos indignos. Mais ou menos como a terceira via, que está deglutindo seus candidatos como o ser mitológico que habitava a margem oeste do Nilo, o lugar dos funerais e dos cemitérios. Senão, vejamos.
O ex-juiz Sergio Moro (SP) entrou na cena eleitoral como caudatário da bandeira da ética, na franja dos eleitores que votaram no presidente Jair Bolsonaro e estavam descontentes com seu desempenho. Na medida em que a pandemia foi sendo controlada pela vacinação em massa da população, perdeu substância. Não conseguiu avançar em direção às bases conservadoras de Bolsonaro, que se mostrou mais resiliente, porque se beneficia do fato de estar no poder. Moro nunca foi levado a sério pelos principais partidos da chamada terceira via.
Não conseguiu ampliar suas alianças políticas. É um neófito no jogo eleitoral, mas o que pesa mesmo é o estigma de algoz dos políticos investigados pela Operação Lava-Jato. Com a perda de densidade eleitoral, chegou perto dos 9% de intenções de voto, viu minguar o apoio da bancada de senadores do Podemos, ao qual estava filiado, e o risco de ficar sem legenda, mesmo no Paraná, onde o senador Álvaro Dias, seu padrinho político, concorrerá à reeleição. Correu para o União Brasil, pelas mãos do seu presidente, deputado Luciano Bivar, mas enfrentou resistência para ser candidato à Presidência, liderada pelo ex-prefeito de Salvador ACM Neto, o secretário-geral do partido, que resultou da fusão entre o PSL e o DEM. Por ora, Moro só tem garantida a vaga de candidato a deputado federal por São Paulo.
Ciro Gomes (CE) está em terceiro lugar nas pesquisas de intenção de votos, com um percentual que oscila em torno dos 8%. Apesar dos ataques de piranha, manteve o apoio do PDT e mostra resiliência sertaneja, mas não consegue sair do isolamento. Carlos Lupi, o presidente da legenda, não é chamado para os encontros da terceira via. Há razões políticas: a legenda tem uma tradição de esquerda, nacional-desenvolvimentista; o trabalhismo e Brizola são nomes feios para os líderes dos partidos que tentam articular a terceira via.
Mesmo sendo o candidato mais competitivo, Ciro também não ajuda: rejeita concessões programáticas e tem a língua solta. Sua candidatura é vista por alguns líderes da terceira via como à esquerda do próprio ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que lidera as pesquisas. Aparentemente, Ciro aposta no “voto útil” dos que não querem manter Bolsonaro nem a volta do PT ao poder. Com essa estratégia, bastaria manter sua candidatura e esperar os eleitores migrarem dos demais candidatos da terceira via. O risco é de que isso ocorra muito mais em direção a Bolsonaro, o que acabaria funcionando como um fator de sucção dos seus próprios votos por Lula.
O ex-governador João Doria (SP) venceu as prévias do PSDB, mas sua candidatura não decola. Às vésperas de renunciar ao cargo de gestor paulista, ameaçou permanecer no Palácio dos Bandeirantes e desistir da candidatura, o que agastou sua relação com o vice que assumiu o cargo, Rodrigo Garcia. A conspiração para que Doria desista existe e até entre os tucanos paulistas. Os seis deputados federais que abandonaram a legenda haviam apoiado Doria nas prévias, o que complica sua situação nos demais estados. A federação com o Cidadania, que deveria fortalecer sua candidatura, aumentou a instabilidade, porque a sigla prioriza uma candidatura que unifique a terceira via e não, necessariamente, do PSDB.
O estatuto tucano diz que as prévias são soberanas, as regras do jogo da federação garantem primazia para o candidato do PSDB. Mesmo assim, a situação de Doria é muito vulnerável internamente. O ex-governador gaúcho Eduardo Leite faz campanha aberta contra Doria. Permaneceu na legenda para ser candidato, mesmo correndo risco de não conseguir. Poderia ter migrado para o PSD, em que tinha legenda garantida por Gilberto Kassab (SP), mas optou pela luta interna fratricida na terceira via. Caso consiga êxito, terá vencido uma batalha sangrenta, na qual gastará energias, recursos financeiros e tempo.
É o destino, não existe caminho fácil para quem quer ser presidente da República. A senadora Simone Tebet (MS), candidata do MDB, é a noiva desejada por todos, mas quer ser cabeça de chapa. Conversa com todo mundo e, de certa forma, se beneficia da disputa no PSDB, porque tanto Doria quanto Leite prefeririam apoiá-la a ter que fazer um acerto entre si. O problema de Tebet é que o MDB não é um partido homogêneo, as suas principais lideranças do Norte e Nordeste já estão embarcadas na candidatura do ex-presidente Lula. A tradição do MDB é cristianizar seus candidatos, como fez com Ulysses Guimarães, Orestes Quércia e Paes de Andrade.