Ativista diz que eleitor negro brasileiro elege seus opressores
Foto: Rafael Martins/Folhapress
“O eleitor negro brasileiro é o único que elege os seus inimigos. E isso não é uma força de expressão”, afirma Hélio Santos, um dos principais ativistas da causa racial no país desde os anos 1970, quando criou um grupo negro do MDB (o partido de oposição ao regime militar) antes de atuar, em governos tucanos, nas primeiras instituições públicas voltadas ao combate ao racismo após a abolição.
“Veja essas reiteradas chacinas e como reagem os governadores dos mais diferentes perfis ideológicos: o silêncio”, critica ele, que hoje preside o conselho da Oxfam Brasil e o Instituto Brasileiro de Diversidade.
“Num país de maioria negra, esses governantes, majoritariamente, recebem votos de eleitores negros e são eleitos. Mas a consolidação da democracia representativa pede uma representação maior de negros e de mulheres.”
Hélio foi o principal idealizador do Quilombo nos Parlamentos, iniciativa da Coalizão Negra por Direitos, rede de 250 organizações do movimento negro brasileiro, que reúne mais de 100 pré-candidaturas negras e antirracistas.
Para ele, o Brasil vive um momento novo em relação à questão racial, e as eleições de 2022 devem refletir essa nova sensibilidade.
“O único momento em que há igualdade de oportunidades e de condições no Brasil é no momento do voto. O voto do trabalhador mais humilde ou o desempregado mais aviltado tem o mesmo peso do voto do brasileiro mais rico. Valorizar esse momento é um trabalho nosso.”
Segundo Hélio, se por um lado há a questão do voto racial, que não deveria, diz, ser exclusivo de eleitores negros, por outro lado as candidaturas de pessoas negras sofrem de falta de investimentos.
“Precisamos democratizar os partidos. E, nas eleições, a gente tem de vir com um movimento de ruptura mesmo, que possa projetar um novo Brasil para o século 21. A valorização do voto racial é uma maneira importante de consolidar a democracia no Brasil.”
O professor cita pontos da agenda criada pela Coalizão Negra para o país, que inclui debates sobre questões estruturais como educação, saúde e segurança pública, além de tratar de política de drogas, urbanização e geração de renda.
“Precisamos de políticas afirmativas disruptivas, que tragam reparação racial e possibilitem desenvolvimento com sustentabilidade. Eu diria, sustentabilidade moral”, avalia. “Podemos levar o Brasil para um novo patamar civilizatório, e isso passa pela eleição de negras e negros.”
Qual é a situação da representação política no Brasil? Se você tomar como referência o maior segmento populacional brasileiro, o de mulheres negras, que são 28% da população, você teria que ter 144 parlamentares mulheres e negras na Câmara dos Deputados [28% de 513 deputados). Mas elas são apenas 13.
O Brasil é um país com 52% de mulheres e 56% de negros e, no entanto, a larga maioria das pessoas que ocupam o espaço de poder são homens brancos. O Brasil tem uma bancada feminina menor que a de países subsaarianos. É uma situação muito precária.
E essas distorções são a matriz de vários outros problemas que o país enfrenta.
Como mudar esse quadro? A população negra não pode mais atuar como coadjuvante na construção de um país profundamente injusto, corrupto e excludente, que é, de longe, um dos mais desiguais do mundo. Não é mais possível comparecer para aplaudir decisões de cúpulas partidárias das quais não tenhamos participado porque elas raramente consideram, em sua justa dimensão, o aspecto racial, com os necessários recortes de gênero e de classe.
Neste contexto, o que representa a iniciativa Quilombo nos Parlamentos? A visibilidade da questão racial no Brasil hoje está em outro patamar, ainda não seja o ideal. A questão racial no Brasil tem nova percepção, não só pela sociedade como um todo mas também pela própria população negra.
Isso mudou sobretudo depois do assassinato de George Floyd e da erupção do movimento Vidas Negras Importam dos EUA para vários lugares do mundo. No Brasil, isso teve uma repercussão importante. E essas eleições podem demarcar um momento novo. O protagonismo da Coalizão Negra por Direitos abriu uma janela de possibilidades.
Como isso pode impactar o exercício do voto? A cor do voto é uma discussão. Muitas pessoas não-negras compreendem hoje que uma maneira de você atuar na pauta antirracista é votar em candidatos negras e negros que tenham a questão da equidade racial como bandeira principal. Dar centralidade à questão racial é, na nossa avaliação, o que pode reduzir o que eu chamo de assimetria bizarra, que é o que nós temos no Brasil.
O que é assimetria bizarra? Durante décadas, o país esteve entre os dez mais ricos do mundo, tomando como referência o PIB [Produto Interno Bruno]. Estávamos junto com Japão, China, Inglaterra, EUA, França, Alemanha. Mas, simultaneamente, o Brasil perfilava entre os dez países mais desiguais do planeta, neste caso junto com a África do Sul, o Gabão, a Zâmbia e outros países africanos reconhecidamente pobres.
São países que completaram poucas décadas de emancipação. E, no Brasil, vamos comemorar agora em setembro 200 anos de autonomia [com a proclamação da independência de 1822). Não dá para comparar. Como é que você pode estar ao mesmo tempo entre os países mais ricos e entre os países mais desiguais?
Como? A explicação —simplista, é verdade— que eu trago é que, dentre aqueles dez países mais ricos, o Brasil era o único de maioria negra. E, quando não se dá centralidade para a questão racial, o resultado é o país que nós somos. Hoje, já existe uma percepção, sobretudo da camada mais instruída da sociedade, de que a eleição de negras e negros pode ser, sim, um mecanismo democrático importante para reduzir essas distâncias.
Candidaturas negras devem receber votação mais expressiva em 2022? O voto racial terá de contar. A meu ver, o eleitor negro brasileiro é o único do mundo que elege os seus inimigos. E isso não é uma força de expressão. Veja essas reiteradas chacinas, e como reagem os governadores dos mais diferentes perfis ideológicos: o silêncio. Num país de maioria negra, esses governantes, majoritariamente, recebem votos de eleitores negros, e são eleitos. Pode-se reclamar do que quiser do Congresso, mas ali não há um parlamentar sem voto. Foram todos eleitos.
Como promover voto consciente? O único momento em que há igualdade de condições e de oportunidades é na hora do voto. O voto do trabalhador mais humilde ou o desempregado mais aviltado tem o mesmo peso do voto do brasileiro mais rico. Valorizar esse momento é um trabalho nosso. Isso vai requerer tempo de TV, investimento e requisitos que, historicamente, as candidaturas negras não têm.
Por que? Temos de democratizar os partidos políticos com abertura de espaço para mulheres e para negros, e metas de ocupação dos partidos por esses grupos. Candidaturas não são avulsas. Os candidatos todos estão ligados a partidos e precisam de equidade material: no financiamento das campanhas, na produção de materiais, no tempo de rádio e TV.
Qual é a função da diversidade na representação política? A diversidade é apenas um tema da antropologia oficial. Temos que transformar isso numa corrente que leve à concretização da equidade racial e de gênero. Igualdade de oportunidades é a implementação de políticas específicas de reparação que possam mudar a base do país.
Nas eleições, a gente tem de vir com um movimento de ruptura mesmo, que possa projetar um novo Brasil para o século 21. A valorização do voto racial é uma maneira importante de consolidar a democracia no Brasil. E, aí, é necessário pedir votos em candidaturas negras, não só do eleitorado negro, mas do eleitorado como um todo.
Qual é o impacto esperado do aumento desses grupos nos parlamentos? Na minha opinião, é isso o que vai mudar a composição de núcleos de decisão. Teremos um potencial de negociação em outro patamar. Estou apostando muito nisso. Temos uma pauta importante e um elenco de políticas. Pensar políticas de apoio integral a famílias em situação de vulnerabilidade. Políticas afirmativas localizadas, para além das universidades.
A regeneração urbana das 6.500 comunidades esquecidas, que aqui no Brasil chamamos de favelas. Invadir essas regiões, não com a polícia, mas junto com as lideranças locais e por meio de políticas que criem possibilidades de cidadania, não só do ponto de vista urbanístico mas de geração de renda e da segurança.
A reestruturação da política de drogas e do sistema penal. A reversão do teto de gastos. O genocídio da juventude negra. A segurança pública tem de ser uma política de Estado, cujo foco não seja racista, para que balas não se percam sempre na direção de corpos negros. O ‘S’ do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] voltado para o empreendedorismo social ou empreendedorismo do trabalho informal. O Brasil tem uma população de 40 milhões de pessoas informalizadas. Qual é o projeto dos partidos para eles?
Faltam propostas da maioria das candidaturas para a população negra? Precisamos de políticas afirmativas disruptivas, que tragam reparação racial e possibilitem desenvolvimento com sustentabilidade. Eu diria, sustentabilidade moral. Num país rico como o nosso, é insustentável tanta desigualdade. Sua matriz têm a ver, sempre, com o dia 14 de maio de 1888: o dia seguinte ao fim da escravidão, que é o dia mais longo, porque nos atinge ainda hoje, neste momento, e pode ser visto nas praças do centro da cidade de São Paulo, nas ruas das periferias, nas cadeias… É a precariedade do que não se fez naquele momento, e que está aí por ser feito.
O voto racial é para fazer uma modernização regeneradora. E regenerar no sentido de curar mesmo. A pauta racial é importante e requer ousadia. Precisamos discuti-la com aqueles que postulam os empregos de presidente e de governador. Ousadia não tem nada a ver com a irresponsabilidade, mas com a aposta no potencial interno do país. Os 212 milhões de brasileiros não são um problema. Eles são parte da solução.