Bolsonaro dá cargo fictício nos EUA para seu médico
Foto: Pedro Ladeira – 13.jul.2021/Folhapress
Jair Bolsonaro (PL) arrumou um emprego para seu médico cardiologista na Presidência, Ricardo Camarinha, em um órgão brasileiro nos Estados Unidos. Até agora, pouco mais de dois meses depois da transferência do médico para a Apex-Brasil em Miami, não se sabe exatamente o que ele faz por lá.
A tratativa para a acomodação havia sido revelada pela Folha em novembro passado, tendo virado mais um caso que contaria o discurso presidencial de que “acabou a mamata” em relação a indicações para cargos públicos.
Ao contrário. A nomeação de Camarinha foi um pedido pessoal de Bolsonaro ao general da reserva Mauro Cid, seu colega de turma na Academia das Agulhas Negras que está lotado como chefe do escritório da agência de promoção comercial brasileira na cidade americana desde 2019.
O cardiologista é funcionário público desde 1983, tendo tratado de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) no Planalto. Tenente-coronel médico da reserva na Aeronáutica, ele caiu nas graças de Bolsonaro e foi comissionado no Gabinete Pessoal da Presidência em 2019.
Ele ganhava R$ 16,9 mil até março, quando deixou o posto e foi incorporado à Apex. Agora, recebe US$ 7.637 (R$ 36,8 mil no câmbio desta quinta, 2) como segundo-oficial expatriado.
Camarinha não atendeu a reportagem nem em novembro, nem agora, tendo recebido e não respondido mensagem por aplicativo. Desde o ano passado, segundo pessoas com conhecimento do caso, ele busca uma forma de mudar para a Flórida, onde tem família.
Como a Apex só contrata em seus escritórios no exterior pessoas já com visto de trabalho e oriundas de empresas americanas, foi dado um jeitinho.
Camarinha virou segundo-oficial, posto secundário na agência, e foi expatriado —é o único funcionário da Apex nesta posição nessa condição, sendo os outros quatro pessoas com cargo de chefia.
Em situação ordinária, sem serem expatriados, há 34 funcionários da agência no exterior, 8 deles em Miami.
Segundo registros imobiliários da Flórida, Ricardo Peixoto Camarinha mora em Winter Garden, uma cidadezinha grudada na meca dos brasileiros no estado, Orlando. Isso leva a questões acerca da natureza de seu trabalho, dado que funcionários do escritório de Miami afirmam reservadamente nunca tê-lo visto despachando por lá.
A Folha questionou a Apex sobre isso, e a resposta foi lacônica, apenas confirmando que ele está no seu quadro de pessoal desde março.
Depois, repetiu o argumento usado em novembro: de que a agência buscava uma pessoa com conhecimento da área médica para interações comerciais na área, algo que teria sido estimulado pela pandemia.
“Ele presta assessoria especializada para Apex-Brasil”, disse a agência, sem detalhar. O caso todo foi tratado com o sigilo possível no órgão, e a reportagem ouviu ao menos duas queixas explícitas sobre o trâmite. Essas pessoas creem que, mais do que o dinheiro da posição, o maior benefício para Camarinha foi o visto.
A operação envolveu a Embaixada do Brasil nos EUA e Cid, militar próximo de Bolsonaro. Seu filho, o tenente-coronel Mauro César Cid, é o ajudante de ordens do presidente e um dos poucos funcionários a quem ele devota confiança total.
Cid, o filho, é quem organiza a fila daqueles que buscam chegar ao mandatário, e desde o ano passado é tido como um conselheiro. Ele é investigado no inquérito acerca do vazamento de uma operação da Polícai Federal por Bolsonaro, foi indiciado e teve o sigilo telemático quebrado.
Cid, o pai, ganhou o cargo numa das disputas internas de poder na Apex. Ele chegou a ser cotado para o Comando do Exército quando Bolsonaro venceu a eleição em 2018, mas acabou indo para a reserva.
A Apex tem, brincam alguns de seus servidores, uma caveira de burro enterrada sob sua sede. Criada em 2003, ela sempre foi vista como um ponto de profissionalismo no serviço público, trabalhando em conjunto com o Itamaraty, mas sob o guarda-chuva do antigo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio Exterior e Serviços, já extinto.
No governo Michel Temer (MDB), em 2016, o tucano José Serra aceitou ser chanceler sob a condição de levá-la para a guarda das Relações Exteriores, gerando atritos por sobreposição de funções com a área comercial da diplomacia.
Mas foi no governo atual que a agência ganhou infame notoriedade ao abrigar estrelas do nascente bolsonarismo, que acabara de ganhar as eleições presidenciais.
Seu primeiro presidente, Alex Carrero, caiu após embate com a polêmica Letícia Catel, uma amiga próxima do primeiro-filho Eduardo Bolsonaro e do então chanceler Ernesto Araújo que fora acomodada na diretoria de Negócios.
Logo depois, foi a vez de deixar o posto atirando Mario Vilalva, diplomata que acusou Ernesto de buscar esvaziar sua cadeira para robustecer a da amiga, que fora secretária-geral de forma voluntária do então partido de Bolsonaro, o PSL, em São Paulo.
Nos embates que envolviam a ala ideológica e militares naquela largada de governo, os últimos se deram melhor. Entrou em maio daquele ano na chefia o almirante da reserva Sergio Segovia, que demitiu Catel e outros bolsonaristas. Como praxe, cerca de dez fardados ganharam espaço, inclusive o general Mauro Cid em Miami.
No ano passado, em mais uma acomodação já que militares permaneceram em seus cargos, assumiu a agência novamente um diplomata, Augusto Pestana.
Há um motivo para tanta disputa. Além da possibilidade de trabalho no exterior, a Apex é atrativa por oferecer salários suculentos e fora da regra do teto do funcionalismo (R$ 39,2 mil), já que é custeada pelo Sistema S.
Segundo os dados mais recentes do Portal da Transparência, de novembro passado, o general Cid por exemplo somou aos cerca de US$ 10 mil (R$ 48 mil nesta quinta, 2) de seu cargo outros R$ 35 mil oriundos de sua reserva remunerada.
Em novembro de 2021, a Apex esteve no centro de uma polêmica em Dubai, onde coordena o pavilhão brasileiro na Expo realizada na cidade árabe. Criticada pela vacuidade do estande brasileiro, que só tem um espelho d’água e projeções, ela recebeu uma semana de atividades culturais promovida por São Paulo.
Só que na hora de divulgar o evento, omitiu que era patrocinado ao custo de R$ 10 milhões (60% auferidos na iniciativa privada) pelo então governo de João Doria (PSDB), rival de Bolsonaro. Disse que todas as atrações eram “brasileiras”, mas foi acusada pelo tucano de agir de forma “vexatória”.