Bolsonaro defende “liberdade de expressão” apesar de lutar contra ela
Foto: Reprodução
À frente de um governo que ataca jornalistas, censura dados públicos e abre inquéritos contra críticos, o presidente Jair Bolsonaro (PL) e seu grupo político têm reivindicado constantemente a liberdade de expressão como uma bandeira própria.
Para especialistas, além de contraditória com a prática, a postura bolsonarista representa uma armadilha e uma forma de pressão às plataformas de redes sociais. Na avaliação deles, a questão se insere em um debate ainda mal resolvido no país sobre a liberdade de expressão.
Só nesta semana, a suposta defesa da liberdade de expressão foi repetida pelo presidente em reunião com representante do Telegram; pelo seu candidato ao governo de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), ao elogiar site acusado de propagar notícias falsas; e pelo ex-deputado Fernando Francischini (União Brasil-PR), cassado por divulgar afirmações falsas sobre as urnas eletrônicas.
“Ótima conversa sobre a sagrada liberdade de expressão, democracia e cumprimento da Constituição”, postou o presidente após encontro com o aplicativo amplamente utilizado por bolsonaristas, que já esteve na mira da Justiça Eleitoral.
A ênfase na liberdade de expressão ocorre em meio a uma preocupação crescente com os efeitos da desinformação sobre o debate público e as tentativas de Bolsonaro de desacreditar o processo eleitoral.
O mais recente relatório global publicado pela ONG Artigo 19 mostra que, sob seu governo, o Brasil atingiu sua menor pontuação em dez anos no índice de liberdade de expressão.
O texto, publicado em julho do ano passado, contabilizou 2.187 declarações falsas ou distorcidas do presidente e centenas de declarações que atacaram ou deslegitimaram jornalistas, além do uso da Lei de Segurança Nacional contra profissionais e manifestantes e a ocultação de dados sobre a pandemia de Covid-19.
A liberdade de expressão como mote bolsonarista ganhou força com o inquérito das fake news, presidido pelo ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes, que mirou diversos aliados do presidente, mas não só.
No último dia 2, Moraes determinou o bloqueio também das páginas do PCO (Partido da Causa Operária) nas redes sociais, por postagens em que a sigla pediu a dissolução do Supremo e acusou o Tribunal Superior Eleitoral de tentar fraudar eleições.
Bolsonaro defendeu a manutenção das páginas da legenda de esquerda, ecoando a nova prioridade à liberdade de expressão em sua retórica. Em manifestação favorável ao presidente no último dia 1º de maio, em São Paulo, cartazes sobre o tema predominavam, em detrimento de outras pautas tradicionais da direita como defesa da família e de posse de armas.
Além de lembrar a contradição dessa suposta defesa da liberdade de expressão com a prática, Leonardo Rosa, professor de direito da Universidade Federal de Lavras, lembra que Bolsonaro é saudosista de um regime, a ditadura militar (1964-1985), que teve a censura a opositores, artistas e intelectuais como uma marca.
Por isso, Rosa avalia que a tentativa de Bolsonaro de desacreditar a eleição, principalmente em caso de derrota, é a principal ameaça que a liberdade de expressão enfrenta no Brasil.
“As coisas estão conectadas: a ideia de que o processo eleitoral é legítimo e de que democracia é aberta a críticas. Quem não respeita processo eleitoral tem pouca razão para respeitar a opinião da oposição, é o que a experiência mostra.”
Pesquisadora da USP, a cientista política Marina Lacerda lembra que a tentativa se de se apropriar da bandeira da liberdade de expressão não é exclusiva de Bolsonaro, é comum também entre outros líderes de direita como o ex-presidente Donald Trump.
“Um elemento comum dos movimentos de extrema direita, fascismo e alt right [direita alternativa] é a rejeição do legado iluminista de que se deve perseguir a igualdade. Ao usar a liberdade de expressão contra a ideia de solidariedade social, usa-se um legado do próprio iluminismo contra outro”, diz.
Além de estratégia retórica, o recurso também serve como uma forma de pressão às redes sociais, que nos Estados Unidos já baniram Trump por incitação de violência após a invasão do Congresso americano em janeiro de 2021.
Ao longo de seu mandato, o presidente americano oscilou entre colocar as redes como espaços privilegiados e livres de manifestação e criticá-las por apagar publicações que feriam as regras de uso.
Para o professor da USP Pablo Ortellado, que estuda o debate político no meio digital, o uso da bandeira da liberdade de expressão pelo grupo de Bolsonaro acaba por servir para pressionar as redes a não aplicar a ele as mesmas sanções que sofreu Trump.
“É evidente que ele não é um defensor da liberdade de expressão. Foi o bolsonarismo, por exemplo, que mobilizou o [movimento] Escola Sem Partido para atacar os professores.”
Se há uma estratégia política, a apropriação da defesa do direito de manifestação do pensamento também revela uma certa falta de consenso sobre o que se debate quando se fala de liberdade de expressão no Brasil.
Para João Brant, pesquisador e consultor em políticas de comunicação e coordenador da plataforma Desinformante, há uma dimensão individual e uma coletiva quando se trata do assunto.
A individual trata basicamente do direito de cada um falar o que quiser. A coletiva, reconhecida em documentos de organismos internacionais, pressupõe que a sociedade precisa estar bem informada para tomar decisões e participar da vida democrática.
É nessa que se baseia a defesa de remoção de notícias falsas das plataformas.
“Se mentiras não são exceção, mantê-las em circulação polui de tal forma o ambiente informacional que a sociedade deixa de estar bem informada”, diz Brant.
O professor do Insper Fernando Schüler cita o exemplo da decisão sobre o PCO para dizer que o bolsonarismo não é a única força a ferir a liberdade de expressão no país.
“Na cultura brasileira, a defesa do princípio da Primeira Emenda é muito fraca”, diz, citando o dispositivo constitucional americano que dá guarida a uma visão ampla e liberal da liberdade de expressão. “O pensamento autoritário no Brasil tem raízes profundas.”