Bolsonaro quer usar dinheiro público para comprar votos
Foto: Geraldo Magela/Agência Senado
A menos de quatro meses das eleições, o governo do presidente Jair Bolsonaro resolveu colocar na mesa uma proposta para utilizar os R$ 29,6 bilhões que seriam destinados a compensar perdas de Estados que zerassem o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) sobre diesel, gás de cozinha e gás natural até o fim de 2022, na concessão de benefícios à população mais pobre e caminhoneiros autônomos.
A mudança, que está sendo costurada no Senado, entrará na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 16 e promove a elevação do valor do Auxílio Brasil dos atuais R$ 400 para R$ 600 mensais, o oferecimento de um voucher de R$ 1 mil por mês a caminhoneiros autônomos e o aumento do valor do vale-gás, que hoje paga R$ 53 a cada dois meses e seria dobrado. As medidas valeriam até o fim de 2022, quando acaba o mandato de Bolsonaro, que busca a reeleição, mas aparece neste momento nas pesquisas como sendo derrotado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em primeiro turno.
A ideia é que, agora, o relator Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE) avance na discussão com a equipe econômica sob aspectos fiscais e legais para colocar o plano de pé. Ao passo que acréscimos no vale-gás e no Auxílio Brasil não enfrentariam nenhum obstáculo legal, ainda há dúvidas em relação ao voucher dos caminhoneiros, por ser uma criação de benefício em ano eleitoral. “A ideia é que todos os transportadores sejam beneficiados com o voucher de R$ 1 mil. A gente está falando, sim, de R$ 30 bilhões [no total] que o governo quer colocar na mesa para que chegue na ponta de forma eficaz”, pontuou o autor da PEC, Carlos Portinho (PL-RJ), líder do governo no Senado.
Portinho disse não ver necessidade de edição de um decreto de calamidade ou instrumento que o valha. Os recursos para essas medidas são os mesmos, de excepcionalizar o teto. “Não há necessidade de decreto de calamidade. A caracterização de uma emergência internacional é clara e óbvia”. Mas, segundo fontes do governo, existe a intenção de blindar a decretação de um estado de emergência contra um eventual descontrole nos novos gastos. A ideia é travar tudo.
Até ontem, contudo, não estava claro para especialistas em Orçamento e integrantes do Tribunal de Contas da União (TCU) como o governo iria redigir a inclusão dessa possibilidade na legislação, o que gerava preocupação.
De acordo com a Lei das Eleições (9504/1997), no ano em que se realiza eleição fica “proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa”.
Normalmente, o estado de emergência é utilizado para o Executivo federal transferir recursos para Estados e municípios em dificuldades para ações de socorro, assistência a vítimas, restabelecimento de serviços essenciais e reconstrução de áreas atingidas por desastres. O estado de calamidade está previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), enquanto a Constituição trata do estado de sítio e do estado de defesa.
“Tenho interpretado que o estado de emergência seria aquele estado de calamidade [como o utilizado na fase mais aguda da pandemia]”, comentou um especialista em contas públicas sob a condição do anonimato. “Não sei o que seria o estado de emergência. Já o estado de calamidade abre para se fazer despesas fora do teto, mas exige medidas outras de compensação, como não dar aumento ao funcionalismo”, acrescentou outro economista que não quis ter o nome mencionado.
Se aprovada no Senado, a PEC 16 ainda seguirá para a Câmara. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), mudou ontem novamente o rito do sistema de deliberações remotas e autorizou que parlamentares registrem presença e votem em projetos de lei às segundas e sextas-feiras pelo celular, mesmo sem estarem em Brasília. A alteração visa contar prazo todos os dias para o andamento desta e outras PECs de interesse do governo.
A decisão de abandonar a desoneração do ICMS leva em conta o cálculo político. De acordo com interlocutores governistas, o Palácio do Planalto “percebeu” que é melhor evitar “intermediários”, como os governadores, e destinar quase R$ 30 bilhões diretamente para as famílias de baixa renda, justamente o público que Bolsonaro precisa conquistar se quiser superar Lula em outubro.
Pela proposta original da PEC, os recursos seriam repassados aos Estados que aceitassem fazer uma desoneração do ICMS tanto para o diesel como para o GLP. Ou seja, o sucesso da medida dependeria da quantidade de unidades da federação que poderiam ou não aderir ao programa. Já a destinação de recursos para programas sociais acontece de maneira imediata e atinge principalmente as camadas mais pobres da população.
De acordo com uma fonte governista, na prática, o Executivo está deixando de lado a ideia de reduzir os combustíveis para todos, o que poderia ter algum efeito positivo junto à classe média, e focando nos eleitores que, geralmente, estão mais próximos do PT, que são os mais pobres.
A equipe econômica trabalha neste momento para que o impacto fiscal do pacote, que incluiria estas e outras medidas tomadas para conter a alta no preço dos combustíveis, fique em torno de R$ 50 bilhões até o fim do ano. “Esse é o esforço”, disse uma fonte ao Valor. Segundo a fonte, a quantia pode ser compensada por R$ 26 bilhões da outorga da Eletrobras e “dividendos de estatais”. “A ideia de não passar muito dos R$ 50 bilhões é que, se for em torno disso, dá para tentar ficar neutro do ponto de vista de resultado primário”, afirma.
Assim, R$ 22 bilhões seriam direcionados para o aumento do Auxílio Brasil, R$ 4,8 bilhões para o auxílio aos caminhoneiros e R$ 1 bilhão para dobrar o vale-gás. Esse aporte, de R$ 27,8 bilhões, ficaria fora do teto de gastos.
Já outros R$ 16,8 bilhões dizem respeito ao corte do PIS/Cofins e da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) sobre gasolina e etanol. Por ser uma renúncia de receitas, os quase R$ 17 bilhões são irrelevantes para o teto de gastos. Assim, sobrariam aproximadamente R$ 5,4 bilhões para serem usados em outras frentes. “Pode entrar mais coisa”, admitiu a fonte.
Portinho explicou que, como os governadores vêm demonstrando resistência à proposta inicial de zerar o ICMS, o aumento nos benefícios seria o caminho mais eficiente para fazer com que o ganho chegasse aos mais afetados pela alta dos combustíveis. “Há um sentimento dos líderes do Senado de que não fazer nada não é uma opção. E há um receio de que os governadores, pelos últimos gestos que adotaram, não tenham a mesma sensibilidade em relação à população”, alegou. “Há uma convergência para que chegue na ponta para o consumidor, especialmente o caminhoneiro, a dona de casa que precisa do botijão de gás. E há uma convergência de que, possivelmente, substituir a compensação aos governos por medidas mais efetivas, que a gente tenha certeza de cheguem na ponta, sejam mais eficazes”.
Ontem, Bolsonaro sancionou a lei que considera combustíveis, energia, transporte coletivo e comunicações como serviços essenciais. Isso limita a 17% ou 18%, dependendo do Estado a alíquota máxima do ICMS cobrados sobre esses setores.