Direita quer proibir até propostas de ampliação do aborto
Foto: Pablo Valadares / Câmara dos Deputados
Deputados alinhados ao presidente Jair Bolsonaro (PL) já apresentaram à Câmara, desde 2019, mais de 20 projetos de lei que impõem algum tipo de restrição ao aborto no Brasil. A bancada governista tenta impulsionar a pauta e criou até uma frente parlamentar sobre o assunto, mas sem sucesso: até o momento, nenhuma das propostas foi votada pela Casa.
Um levantamento do UOL aponta que na atual legislatura a Câmara recebeu 24 projetos contra o aborto, sendo 23 de autoria de parlamentares e um do próprio governo (veja lista abaixo). Os textos preveem aumento de penas, criam crimes como a “incitação ao aborto”, anulam as normas que regulam o atendimento às mulheres e pedem até a proibição da prática em caso de estupro ou risco de vida à mãe.
A maior parte das propostas foi levada à Câmara por deputados eleitos em 2018 pelo antigo PSL, que abrigou a candidatura de Bolsonaro, e que migraram para o PL com o presidente. Logo em março de 2019 eles fundaram a Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família, com apoio da então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.
A produção de polêmicas começou ainda antes da formação do grupo. Em fevereiro, o deputado Márcio Labre (PL-RJ) propôs proibir a venda de contraceptivos, como o DIU (dispositivo intrauterino) e a pílula do dia seguinte, que seriam métodos “microabortivos”. Após a má repercussão, Labre retirou a proposta, afirmando que o texto ainda era um rascunho e foi protocolado por engano.
Esse recuo, no entanto, foi uma exceção. Das 24 propostas analisadas pela reportagem, esta é a única que foi retirada. Cinco delas foram arquivadas ou devolvidas ao autor por serem inconstitucionais, mas a maioria (18) segue travada em alguma etapa da tramitação. Ao final da legislatura, em dezembro, todas serão arquivadas, mas poderão ser resgatadas no ano que vem a pedido de algum parlamentar.
A pauta antiaborto não teve espaço na Câmara durante a presidência de Rodrigo Maia (PSDB-RJ), nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro. Em 2021, com a chegada de Arthur Lira (PP-AL) ao comando da Casa como aliado do Planato, os bolsonaristas esperavam que o tema fosse pautado, mas a expectativa não se materializou.
Questionada pelo UOL, a assessoria de Lira afirmou que “a pauta do plenário é definida por decisão da maioria do Colégio de Líderes”. A reportagem também procurou o deputado Diego Garcia (Republicanos-PR), presidente da frente parlamentar que trata do tema, para avaliar o motivo de nenhum projeto do grupo ter sido pautado, mas não houve resposta.
Para a antropóloga Debora Diniz, professora na UnB (Universidade de Brasília) e especializada no tema, alterar a legislação sobre aborto implica em alto custo político. A pressão da bancada bolsonarista, dessa forma, não teria sido suficiente para forçar os presidentes da Câmara a colocarem o tema em votação.
“Eu não acho que faltou interesse, porque essa questão sempre foi importante ao bolsonarismo e suas alianças. Mas há um custo político muito intenso em fazer um retrocesso, pela via Legislativa, nos direitos que hoje são garantidos”, avalia Diniz.
Na visão dela, o governo passou a maior parte do tempo produzindo crises e não conseguiu impor a agenda antiaborto ao Congresso. “Houve um atravessamento de uma série de questões, inclusive de escândalos contra eles [a base governista]. Então eles não tiveram força para alavancar a pauta de costumes”, observa.
Em maio de 2019, ainda nos primeiros meses de governo Bolsonaro, os deputados Filipe Barros (PL-PR) e Chris Tonietto (PL-RJ) propuseram proibir o aborto inclusive nos casos de estupro ou risco de vida à mãe, que hoje são permitidos por lei.
O texto, que está engavetado na comissão de Direitos da Mulher da Câmara, criminaliza as mulheres que interrompem a gravidez mesmo nestas duas hipóteses. Trata-se de uma mudança que o próprio governo, apesar do apoio à causa antiaborto, sempre negou ter intenção de propor.
Tonietto e Barros argumentam que o aborto não é justificável em nenhum dos casos. Sobre o risco de morte para a mãe, os parlamentares citam dados da literatura médica para afirmar que o aborto não serve para salvar a gestante de um estado crítico de saúde. Na hipótese de estupro, eles defendem que um bebê gerado pela violência sexual pode ser entregue para adoção, caso a mãe não deseje criá-lo.
“O autor do estupro ao menos poupou a vida da mulher, senão ela não estaria grávida. Pergunta que não quer calar: é justo que se faça com a criança o que nem sequer o agressor ousou fazer com a mãe: matá-la?”, questionaram os parlamentares na justificativa do projeto.
Outra tentativa da bancada bolsonarista, até o momento frustrada, é a de alterar o Código Civil para dar ao embrião recém-fecundado os mesmos direitos de uma pessoa já nascida. No Senado, uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) com esse objetivo, apresentada em 2015, chegou a ser recolocada em tramitação, mas segue estagnada.
Embora os textos não peçam diretamente a retirada de nenhum direito, especialistas avaliam que a mudança poderia colocar o Brasil em situação semelhante à de El Salvador, na América Central, onde mulheres são criminalizadas mesmo quando perdem o bebê devido a um aborto espontâneo. O acúmulo de situações do tipo vem provocando protestos por uma reforma das leis locais.
“Quando a legislação salvadorenha teve essa mudança, mulheres passaram a ser punidas por emergência obstétrica, porque ela equivale a uma negligência com um vulnerável. A mãe perde o bebê e é punida como se tivesse abandonado um filho pequeno em casa por dias”, afirma Juliana Reis, do grupo Milhas pela Vida das Mulheres, que ajuda gestantes a ter acesso ao aborto legal.
Parte dos projetos levados à Câmara pede o aumento das penas para o crime de aborto ou de condutas relacionadas a ele, como a venda de remédios abortivos ou a interrupção em casos de má-formação do feto, que hoje é permitido apenas no caso de microcefalia devido a uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), de 2012.
Outras propostas preveem criar o crime de “incitação ao aborto”. Um dos textos pede uma pena de 3 a 10 anos de prisão a quem “criar, produzir, divulgar, incitar, reproduzir, distribuir ou financiar por meio digital, rádio e televisão, ou em materiais impressos, mesmo que de forma gratuita, campanhas de incentivo ao aborto”.
Os projetos não exemplificam, em suas justificativas, que tipo de conduta se enquadraria como incitação ao aborto. Em 2019, os bolsonaristas fizeram pressão contra a revista Azmina, que fez uma reportagem sobre as recomendações da OMS (Organização Mundial da Saúde) para um abortamento seguro.
O texto usava normas do próprio Ministério da Saúde, de acesso público, mas foi tido pelos governistas como “incitação ao crime”. À época, a então ministra Damares Alves chegou a fazer uma denúncia ao MP-SP (Ministério Público de São Paulo) contra a publicação.
Embora Bolsonaro faça declarações frequentes contra o aborto, o Executivo apresentou apenas um projeto de lei ao Congresso sobre o tema: em julho do ano passado, o governo sugeriu a criação do “Dia Nacional do Nascituro e de Conscientização sobre os Riscos do Aborto”.
A justificativa do projeto, que segue parado na Câmara, é “conscientizar a sociedade a respeito das graves consequências da prática do aborto induzido para a saúde física e mental feminina”. Versões semelhantes também surgiram em âmbito local: na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte, por exemplo, um projeto buscava obrigar a gestante a ver imagens de um aborto antes de passar pelo procedimento.
Apesar da atuação limitada no Legislativo, o governo buscou alterar regras por meio de normativas. Em 2020, uma portaria do Ministério da Saúde obrigava médicos a notificarem a polícia antes de um aborto por estupro, mas a exigência acabou derrubada após pressões externas. Mais recentemente, em junho de 2022, a pasta publicou uma cartilha que afirmava que “todo aborto é crime”, o que também tem sido alvo de críticas.