Polícias de 11 estados usam “câmara de gás” como PRF
Foto: Arte/Metrópoles
O uso abusivo de gás lacrimogênio e de pimenta por agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) que resultou na morte de Genivaldo de Jesus Santos, de 38 anos, em Umbaíba (SE), não é fato isolado no país.
Genivaldo foi morto em uma espécie de “câmara de gás” improvisada por policiais no porta-malas de uma viatura, após ser abordado no último dia 25 por estar sem capacete. O Metrópoles encontrou dezenas de outras situações semelhantes ao redor do país, com o uso de spray de pimenta contra pessoas no interior de veículos oficiais.
Foram ao menos 24 casos registrados em 10 estados (AM, PA, SC, RS, SP, BA, MT, MG, GO e AL), mais o Distrito Federal, nos últimos 11 anos. Homens sufocados em meio a chutes e socos. Torturados por cinco horas. Spray jogado no rosto de um preso quase desmaiado. Viaturas danificadas por quem se debatia para poder respirar.
São relatos que constam em sentenças, acórdãos e diários oficiais de tribunais. Os depoimentos, em alguns casos, são usados para embasar habeas corpus e até pedir indenização por danos morais.
Caso Genivaldo: novas imagens mostram o momento em que PRF joga bomba de gás lacrimogêneo na viatura.
Ao sincronizar os vídeos, é possível constatar que vítima respirou o gás por cerca de dois minutos.
(Via: @SamPancher) pic.twitter.com/YFXPFVgWUh
— Metrópoles (@Metropoles) May 26, 2022
“Estamos falando de um ambiente confinado, onde não há renovação do oxigênio. Se uma pessoa estiver dentro, o oxigênio vai diminuindo, pois o outro gás vai ocupar o espaço dele, impedindo a respiração. Então, o maior problema do caso não é a substância, mas a circunstância”, avalia o perito Casso Thyone, membro do Conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Ele explica que os gases lacrimogênio e de pimenta deveriam ser usados, em tese, para repelir ataques ou afastar agressões, mas sempre em ambientes abertos. “Essa prática [de usar gás dentro de viaturas] tem que ser abolida, quer faça parte ou não dos protocolos previstos”, prossegue, em convesa com o Metrópoles.
No Distrito Federal, dois policiais militares foram condenados e afastados dos cargos após torturarem um homem por mais de cinco horas, quando ele deveria apenas ter sido conduzido à delegacia.
Além do gás de pimenta dentro da viatura, os militares agrediram o rapaz com chutes e teriam usado até aparelho de choque. A vítima era acusada pelos agentes de roubar um veículo e um celular. As agressões, praticadas como “castigo pessoal” pela dupla de PMs, ocorreram em maio de 2014, em Ceilândia e Brazlândia.
“Apanhou dos acusados no trajeto de ida e volta de Brazlândia. Disse que foi utilizado gás de pimenta, o qual foi aspergido contra o declarante quando foi colocado no cubículo da viatura. Foi enforcado e agredido com chutes e socos na barriga, costas e cabeça e está preso em razão do assalto que os acusados lhe imputaram”, detalha acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios(TJDFT), com base no depoimentento da vítima prestado em juízo.
Havia quatro policiais, mas somente três o agrediram.
“Tomou choque na barriga e nas partes íntimas e tomou cacetada na cabeça”, diz trecho de despacho do desembargador José Jacinto Costa Carvalho, em maio do ano passado. Na ocasião, o tribunal julgou prejudicado o recurso dos dois policiais. O magistrado assegurou que os depoimentos da vítima e das testemunhas, aliados às provas periciais, comprovam a autoria e a materialidade da tortura.
Em Caçador, Santa Catarina, um homem implorou pelo “amor de Deus” para que policiais parrassem de jogar gás de pimenta contra ele, já dentro da viatura. Esse caso foi citado em reportagem do Fantástico, da TV Globo, no domingo (29/5). O Metrópoles teve acesso à íntegra do processo.
“Prosseguiu sustentando que os policiais o prenderam em uma viatura e borrifaram um tubo inteiro de gás de pimenta em seu interior, ocasião em que começou a se debater quase fora de si, devido à reação química provocada pelo gás que o asfixiava, resultando na quebra do vidro traseiro da viatura policial”, narra a sentença em primeiro grau, ação de indenização por danos morais e materiais.
“Dentro desse veículo, o declarante ficou parado, quase sem oxigênio, em razão do gás de pimenta que era lançado contra si; em nenhum momento o declarante revidou as agressões sofridas, apenas pediu ‘Por amor de Deus para parar de jogar gás de pimenta’; os policiais agiram desta forma por covardia”, acrescenta, com base em depoimento de uma testemunha.
Em Manaus, Amazonas, o Ministério Público ofereceu denúncia contra seis policiais militares. Em junho de 2019, os acusados teriam feito uma sessão de tortura contra cinco pessoas para saber o suposto paradeiro de drogas e armas.
“[Os policiais] Levaram as vítimas para local ermo e de mata, onde se submeteram a intenso sofrimento físico e mental, consistente em sufocação e atingimento de olhos e mucosas com uso de spray de pimenta, aplicado direto sobre as vítimas, além do uso de artefato de gás no confinamento da cela da viatura”, detalha o Ministério Público do Amazonas.
Os militares também afogaram uma vítima em um curso d’água e a ameaçaram de morte, “tudo sob a alegada motivação da busca por armas e drogas ilícitas”.
Eles foram denunciados por roubo qualificado, dano qualificado, fraude processual majorada, tortura e ameaça. Os seis tiveram a prisão preventiva decretada em julho de 2019, pelo juiz Alcides Carvalho Vieira Filho, da Vara de Auditoria Militar. O 1º tenente Joanderson Cleiton dos Santos Silva foi até ao Supremo Tribunal Federal (STF) tentar um habeas corpus, mas teve o pedido negado pelo ministro Luís Roberto Barroso, em março de 2021.
No Rio Grande do Sul, um homem de 40 anos relatou ter sido asfixiado com sacola e gás de pimenta.
Ele conseguiu um alvará de soltura após alegar abuso na abordagem realizada pela autoridade policial. O homem foi acusado de tráfico de drogas e preso preventivamente em junho de 2020.
Segundo o pedido de habeas corpus, a abordagem policial foi realizada “mediante violência e tortura por meio de asfixia com o uso de uma sacola e gás de pimenta”. Ele também apontou a ilicitude das provas colhidas diante da “invasão domiciliar realizada sem ordem judicial e em horário noturno”.
Em Capão Bonito, interior de São Paulo, policiais teriam jogado spray de pimenta em um homem quase desmaiado, já dentro da viatura. A informação consta nas alegações finais apresentadas pela defesa do rapaz, em março deste ano, à 2ª Vara Criminal da cidade.
O homem afirmou que apanhou dos policiais, foi pego pelo pescoço e jogado dentro da viatura.
“Um pelo pescoço e outro pelo pé me jogaram na viatura quase desmaiado, hora em que jogaram gás de pimenta e bateram a porta, e a porta bateu em minha cabeça, pois estava apenas com metade do corpo para dentro da viatura”, relatou o homem.
O vidro da viatura quebrou. Há divergências, contudo, sobre como isso aconteceu: se os policiais bateram com a porta na cabeça do homem, ou se ele debateu-se e quebrou a janela.
O advogado pede absolvição do cliente em relação à denúncia e solicita que seja instaurado inquérito para apuração de prática de crime de ameaça, abuso de autoridade e dano ao patrimônio público pelos policiais. Ele teve a prisão temporária decretada por suposto homicídio, roubo, tráfico de drogas, associação para o tráfico e organização criminosa.