Brasil abre um clube de tiro por dia
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Até o início de 2019, o alagoano Jhon David Silva trabalhava como vigia de uma granja em União dos Palmares, a 73 km de Maceió. Ao deixar o emprego, comprou uma pistola e inaugurou uma nova carreira, orientando outros interessados em adquirir armas de fogo. No ano seguinte deu um passo além: reuniu empresários da região e fundou um clube de tiro, o primeiro do município de 65 mil habitantes.
A empresa, onde Silva atua hoje como instrutor de tiro, é um dos 2.061 clubes desse tipo em atividade no Brasil, segundo números cedidos pelo Exército ao UOL. Quase metade (1.006), segundo os dados, foi fundada de janeiro de 2019 até maio de 2022, durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL). No período, quase um clube de tiro foi aberto por dia no país.
A expansão dos clubes tem acompanhado outros aumentos relacionados a ela, como o de armas em circulação no país. Logo no primeiro ano do atual governo, o país bateu um recorde de inaugurações de clubes de tiro, com a abertura de 232 entidades. A marca, contudo, já foi superada duas vezes: foram 291 clubes fundados em 2020 e mais 348 no ano passado (veja gráfico abaixo).
Os clubes, que em geral eram concentrados em grandes centros urbanos, têm penetrado o interior do país. Alagoas, por exemplo, tinha apenas três entidades registradas no Exército até 2010, sendo duas em Maceió e uma em Arapiraca, segunda maior cidade do estado. Hoje são 25 clubes, espalhados por 15 municípios.
O clube Carcará dos Palmares, onde Silva atua, já nasceu com quase 100 sócios e hoje tem cerca de 400, segundo o instrutor. Para ele, o crescimento do ramo tem atendido uma demanda reprimida. “Quando me tornei despachante bélico, percebi que tinha bem mais gente com armas de fogo registradas do que eu imaginava. Muitos comentavam que precisavam ir à zona rural para fazer treinamento de tiro”, relembra.
Antes mais restrita a praticantes de tiro esportivo e agentes policiais, a atividade tem alcançado um novo público, que vê nas armas como instrumento de segurança pessoal. No último sábado, um ato em Brasília pediu a derrubada de restrições ao armamento para todos os cidadãos. Sob o lema “não é sobre armas, é sobre liberdade”, a manifestação teve discursos de apoio a Bolsonaro.
“A arma tem sido vista como um bem de consumo que passa a fazer parte de um pacote: sou homem, sou conservador, voto em tal partido e tenho uma arma de fogo. É um bem de consumo que faz parte dessa identidade”, afirma Natália Pollachi, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, que luta pelo desarmamento.
Silva, do clube Carcará dos Palmares, afirma que “famílias inteiras” têm frequentado o local, mas a maioria da clientela é masculina: mototaxistas, agricultores, comerciantes e policiais. Em cidades pequenas, agentes de segurança pública têm procurado clubes privados porque a própria polícia não costuma ter estrutura para treinamento nessas localidades.
“No interior, normalmente não se tem isso. Então foi um ganho até para a questão policial o nosso estande de tiro. Já na inauguração nós deixamos o clube à disposição do comandante do BPM [Batalhão de Polícia Militar]. Quando ele quer fazer um treinamento, ele agenda um horário, traz a turma e a gente separa uma das pistas só para eles”, diz Silva.
O crescimento dos clubes de tiro é visto com ressalvas por antigos praticantes da modalidade. O atirador José de Anchieta Jerônimo, presidente da FBTE (Federação Brasiliense de Tiro Esportivo) com 38 anos de experiência, considera que tem havido uma “oferta descontrolada de clubes com objetivo unicamente comercial”, algo que ele classifica como temerário.
“De um lado, a gente fica contente porque muita gente descobre o esporte através desse aumento de clubes. Por outro lado, é um pouco temerário, porque você tem muita gente manuseando armas sem a devida qualificação”, afirma o dirigente.
Fundada em 1973 por policiais militares e civis, a FBTE era à época a única estrutura de tiro oficial no Distrito Federal. Hoje, quase cinco décadas depois, o DF tem 32 clubes registrados, 20 deles no governo Bolsonaro. “Eu defendo que a pessoa tenha o direito de comprar e portar sua arma, dentro da lei. Mas o que eu vejo é uma oferta muito grande de clubes, de forma meio caótica”, diz Anchieta.
Atiradores precisam cumprir uma série de requisitos para comprar uma arma, desde certidão negativa de antecedentes criminais até laudo psicológico e comprovação de aptidão técnica. Os cuidados, contudo, não tornam os clubes imunes a acidentes: no mês passado, um homem morreu baleado em um estande de tiro num condomínio de luxo em Manaus.
Outro problema apontado por especialistas é o risco de que as armas dos clubes, compradas legalmente, acabem nas mãos do crime. Em fevereiro de 2019, assaltantes entraram num estande de tiro em São Paulo e roubaram 58 armas, entre pistolas, fuzis e espingardas. Vários clubes têm grandes estoques porque também são lojas de armamentos e munições.
“Estamos diante de um mercado em crescimento”, afirma Pollachi, do Instituto Sou da Paz. “Esse monte de clubes sendo abertos está atrelado à venda de vários produtos, como acessórios, camisetas e as próprias armas. Hoje existem atiradores influencers, fazendo sucesso no Instagram. Então há várias facetas monetizáveis, é um mercado que se retroalimenta”, diz Pollachi, do Instituto Sou da Paz.
Os dados do Exército mostram que o movimento pró-armas começou a crescer ainda antes do governo Bolsonaro. O registro de clubes de tiro teve uma alta em 2004 e 2005, logo após a aprovação do Estatuto do Desarmamento, mas os números caíram de forma acentuada logo em seguida e se mantiveram baixos até 2016, quando começaram a subir.
O aumento coincide com a ascensão nacional de Bolsonaro, que levou a bandeira pró-armas à campanha presidencial de 2018. “As armas são instrumentos, objetos inertes, que podem ser utilizadas para matar ou para salvar vidas. Isso depende de quem as está segurando: pessoas boas ou más. Um martelo não prega e uma faca não corta sem uma pessoa”, dizia um trecho do plano de governo bolsonarista.
O deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que é próximo de lideranças armamentistas, usa suas redes com frequência para divulgar marcas e produtos do ramo, inclusive clubes de tiro e lojas de armas. O parlamentar também tem atuado nesse sentido no Congresso, apresentando projetos de lei de interesse dos CACs (caçadores, atiradores esportivos e colecionadores).
Ao visitar uma feira de armas em Joinville (SC), em agosto do ano passado, o deputado descreveu a experiência como “uma prova de que a cultura brasileira armamentista segue viva”. Na publicação, ele chamou a cidade catarinense de “Texas brasileiro”.
A comparação encontra eco nos dados do Exército. O estado de Santa Catarina, onde o tiro é ligado à cultura de comunidades de imigração europeia, tem uma taxa de 30 clubes de tiro por milhão de habitantes, a maior do país. A região Sul é destaque nesse ranking: logo atrás de Rondônia, que ocupa a segunda posição no quesito, estão Paraná e Rio Grande do Sul, outros dois polos tradicionais da atividade.