Câmeras fazem mortes por policiais caírem 80%
Foto: Rubens Cavallari/Folhapress
As mortes cometidas por policiais militares despencaram em 19 dos 131 batalhões do estado de São Paulo um ano depois que as ações de seus agentes começaram a ser filmadas. Dados obtidos pelo UOL mostram queda de 80% na letalidade policial nessas unidades após a implantação do programa Olho Vivo —que prevê a instalação de câmeras nos uniformes.
Entre junho de 2021 e maio deste ano, os 19 batalhões registraram 41 mortes por intervenção policial —contra 207 nos 12 meses anteriores ao início do programa.
Apesar do resultado, três pré-candidatos ao governo de São Paulo prometeram, em sabatina UOL/Folha, restringir o uso das câmeras, caso sejam eleitos. Márcio França (PSB) disse que as agentes mulheres ficam constrangidas para usar o banheiro, o que foi rebatido pelo governador Rodrigo Garcia (PSDB), segundo quem “a preservação íntima dos policiais já existe”.
Tarcísio de Freitas (Republicanos), candidato de Jair Bolsonaro (PL), e Abraham Weintraub (PMB), ex-ministro da Educação, condicionaram o uso do equipamento ao controle absoluto do policial militar no registro das imagens.
Essas câmeras permitem gravar o turno completo do policial sem a necessidade de acionamento manual. A tecnologia também impede que o policial desligue a câmera durante a operação. Em caso de necessidade, a PM pode resgatar o arquivo e analisar as imagens.
“Tem candidato que põe como bandeira de campanha acabar com esse programa”, diz Rafael Alcadipani, professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “É uma política pública de estado, não de governo. A PM já está há mais de dez anos estudando a adoção dessas câmeras.”
Para ele, interromper o programa é “uma péssima forma de tratar recursos públicos”.
O UOL pediu por meio de LAI (Lei de Acesso à Informação) os números de mortes e lesões corporais registradas nesses batalhões e que tenham sido cometidas por policiais antes e depois da implantação do programa.
Já no primeiro mês, em junho do ano passado, nenhuma morte foi registrada —foi a primeira vez que isso aconteceu nas 19 unidades desde maio de 2013, data dos dados mais antigos disponibilizados pela PM.
As 41 mortes cometidas por policiais dos 19 batalhões equivalem a 82% da média anual de 226 assassinatos nos sete anos anteriores.
As lesões corporais durante intervenção da polícia também caíram. Foram 44 pessoas que se machucaram em ação policial durante abordagem nos 12 meses após a adoção das câmeras —28% menos do que as 61 ocorrências registradas um ano antes.
Procurada pelo UOL, a PM não se manifestou. Já a Secretaria Estadual da Segurança Pública (SSP) citou, em nota, um compromisso “em reduzir as mortes por intervenção policial” —para isso, conta com o programa.
Graças aos resultados do programa Olho Vivo, outros 27 batalhões passaram a utilizar câmeras em seus uniformes este ano:
15 desde 31 de janeiro;
12 depois de 1º de maio.
Nesses 15 batalhões há mais tempo utilizando as câmeras, as mortes por intervenção policial caíram 87,5% —de 32 para quatro— em comparação com o mesmo período do ano passado, enquanto as lesões corporais passaram de sete para oito.
Especialistas em segurança pública afirmam que as câmeras trazem “transparência” para a ação do policial, que se sente inibido em agredir ou matar suspeitos. Mas alertam que ainda é preciso avançar no combate à violência envolvendo agentes.
Conselheira federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) por São Paulo, Silvia Virginia Silva de Souza afirma que o uso da tecnologia intimida a ação da polícia, escancarando a violência das tropas.
“A redução de 80% em um ano demonstra que as forças de segurança podem atuar de outra forma na contenção da criminalidade”, diz Silvia. “A redução da violência com o uso das câmeras vai impactar em todo o Brasil.”
“Eu acompanho essa discussão em outros estados”, afirma. “Grupos de atuação, principalmente do movimento negro, vêm pressionando os legislativos locais para aprovarem leis com essa mesma finalidade.”
Ela avalia, entretanto, que a adoção das câmeras ainda é insuficiente e defende “uma mudança cultural na formação policial”. “É preciso mudar essa cultura por meio de uma política de segurança que integre a comunidade e valorize o policial, a começar pelos salários.”
A Polícia Militar no Brasil remete à chegada de dom João 6º ao Brasil [em 1808]. Sua missão era buscar escravos fugitivos. Essa essência permanece a mesma.” Silvia Virginia Silva de Souza, da OAB-SP
“Essa redução nas mortes é muito importante. A gente vivia uma situação vexatória, inaceitável de letalidade policial”, observa Alcadipani, da FGV e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Para ele, o uso das câmeras inibe a ação violenta de maus policiais, “que existem em qualquer lugar do mundo”.
“A polícia tem muito poder nas mãos, e não é só no Brasil. É também nos Estados Unidos, na Alemanha”, diz. “O abuso policial nunca vai acabar totalmente, mas o importante é que o agente perceba que a câmera também o protege.”
Ele atribui à adoção do programa Olho Vivo uma mudança de postura do ex-governador João Doria (PSDB), que em 2019 chegou a dizer que pagaria os “melhores advogados” aos PMs que matassem suspeitos.
Com a mudança do clima político no Brasil, o tucano deixou de defender o Bolsodoria —referência ao alinhamento com o presidente Jair Bolsonaro (PL) na campanha de 2018—, e tomou uma série de medidas.
A troca do coronel Marcelo Vieira Salles pelo também coronel Fernando Alencar Medeiros, em março de 2020, reafirmou a mudança nos rumos da segurança pública do estado, arranhada desde que uma ação malsucedida da PM em um baile funk na favela Paraisópolis, na zona sul, terminou com nove mortos em dezembro do ano anterior.
Esse era o problema mais grave de segurança pública porque muita gente morreu sem necessidade. Muitos oficiais tinham vergonha dos casos escabrosos de letalidade. A PM está de parabéns por enfrentar esse problema.” Rafael Alcadipai, da FGV e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Após a troca de comando, as mudanças internas começaram em maio, quando houve uma escalada de óbitos em confrontos com a polícia —nesse mês, foram 102 mortos. O Comando da PM, então, criou a Comissão de Mitigação de Não Conformidades para, como ela própria diz, “depuração interna”, levando policiais criminosos “a julgamento na Justiça comum e militar e demitindo ou expulsando os culpados”.
Alcadipani lembra que a adoção de câmeras no uniforme veio acompanhada de outras medidas, como o uso de armas de choque, “uma tecnologia usada no mundo todo”. “Em vez de usar a arma letal, ele usa a arma de choque.”
Segundo a SSP (Secretaria de Segurança Pública), há 7.500 armas de incapacitação neuromuscular (como armas de eletrochoque) em poder da PM paulista, o que faz dela a terceira força policial utilizando o equipamento no mundo, atrás apenas de Nova York e Londres.
O resultado é que o número de mortos em ações da PM caiu 31% no último ano, considerando todos os batalhões do estado, inclusive os que não usaram a câmera no uniforme. A redução de 80% da letalidade nos batalhões com câmeras no uniforme comprovam o impacto do programa Olho Vivo.
No primeiro caso solucionado com a ajuda das novas câmeras, um PM foi flagrado matando um homem desarmado em setembro do ano passado em São José dos Campos (a 97 km da capital).
As imagens mostraram que, após perseguição policial, o suspeito foi alvejado pelo PM enquanto se preparava para sair do carro já com as duas mãos na cabeça. A Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo concluiu as investigações em dezembro.
Oito policiais, entre praças e oficiais, tiveram o pedido de prisão preventiva solicitado por suspeita de homicídio doloso (quando há a intenção de matar), fraude processual, prevaricação e falsidade ideológica.
Procurada, a PM respondeu por meio da SSP. A secretaria disse em nota que a implantação das câmeras é um “compromisso das forças de segurança no Estado de São Paulo com a vida”, o que também inclui a adoção de armas de incapacitação neuromuscular.
“Dados do 16º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgados no último dia 28, comprovam o compromisso da pasta em reduzir as mortes por intervenção policial”, diz a secretaria. “A taxa é de 1,2 casos para cada grupo de 100 mil habitantes; mais de duas vezes menor que a média nacional, que é de 2,9.”
Com “mais de 8.000 câmeras corporais” em uso, o programa Olho Vivo pretende “chegar a 10 mil [aparelhos] até o final deste ano”, promete o governo.