Magalu e Americanas usam produtos oriundos de mão de obra escrava
Foto: Divulgação/MPT
Se você comprou roupas no site da Magalu e da Americanas nos últimos meses, há um risco de que tenha adquirido um produto feito com mão de obra análoga à escravidão. As duas das maiores redes de varejo do país ofertam em suas lojas virtuais roupas de ao menos cinco empresas autuadas por trabalho escravo entre 2017 e 2021.
É o que revela um levantamento inédito realizado pela Repórter Brasil, que identificou a revenda de peças das marcas NaKepe Creações, Cotton Colors Extra, Confecções Anchor, Amissima e Fitwell Confecções. As cinco marcas foram autuadas sob acusação de manter, ao todo, 63 trabalhadores em condições análogas à escravidão em oficinas de costura de São Paulo (SP). Os dados estão em relatórios de fiscalização trabalhista obtidos pela reportagem.
O anúncio das peças foi realizado por vendedores parceiros, ou seja, os itens produzidos com mão de obra escrava não foram ofertados nos sites Magalu e Americanas diretamente pelas empresas nem pelas marcas autuadas.
Os valores das roupas vendidas, em geral de moda feminina, variam de R$ 65 a R$ 1.350 – na época dos resgates, os trabalhadores recebiam entre R$ 4 e R$ 11,50 por peça costurada.
Todos os anúncios estavam ativos nos shoppings virtuais das duas gigantes do varejo até abril deste ano, quando a Repórter Brasil realizou o levantamento.
Após contato da Repórter Brasil, a Americanas removeu os sete anúncios referentes a produtos das marcas NaKepe Creações, Fitwell e Amissima de seu site.
Em nota, a empresa disse que existem mais de 132 mil lojas parceiras cadastradas em seu “marketplace” e ressaltou que seus parceiros se comprometem a cumprir rigorosos padrões de acordo com o código de ética e conduta e legislação vigente.
O Magazine Luiza removeu cinco dos 10 anúncios encontrados em sua plataforma. Um dos anúncios que saiu do ar vendia peças da Confecções Anchor, autuada por trabalho análogo à escravidão em 2019.
Em nota, a rede varejista afirmou que investigações internas identificaram que um dos sócios da Anchor já havia sido autuado por trabalho análogo à escravidão em outra empresa, “fato que levaria ao banimento dos artigos produzidos pela Anchor oferecidos no marketplace do Magalu”.
Os outros anúncios retirados após contato da reportagem eram da confecção Amissima, mas a nota da Magalu não explica a exclusão.
A justificativa para a manutenção das vendas de peças das marcas Cotton Colours Extra e NaKepe Creações foi a de que as empresas não estão incluídas em listas de alerta e restritivas, como a “lista suja” do trabalho escravo.
“Portanto, com base em dados oficiais, não há justificativa para que a Cotton Colours Extra e a NaKepe Creações tenham seus produtos inseridos na nossa ‘Blocklist’ [lista de bloqueio]”.
Os anúncios seriam mantidos, segundo a nota do Magalu, porque a rede varejista não teve acesso “a documentos que a reportagem alegou ter e que comprovariam a má conduta dessas empresas”. A rede varejista afirmou também que, nos últimos 12 meses, “baniu 268 sellers por cometerem algum tipo de irregularidade”.
Por telefone, uma das donas da Fitwell Confecções afirmou que não comentaria o caso e que a empresa foi “inocentada”.
Segundo fontes no Ministério do Trabalho ouvidas pela reportagem, os autos de infração contra a empresa foram considerados válidos pela Justiça e não há mais possibilidade de recursos por parte da empregadora.
Marcos Sae Kyun Lee, advogado da Confecções Anchor, ressaltou que as autuações trabalhistas contra a empresa ainda estão em grau de recurso na Justiça, que não houve o trânsito em julgado do processo, que parte dos sócios foi absolvida e que seus clientes “foram vítimas de uma empresa terceirizada” responsável pela produção das peças da marca, motivo pelo qual não poderiam ser relacionados ao caso.”
Kyun Lee também já atuou como advogado da Cotton Colors Extra, mas afirmou não ter defendido a marca no caso da autuação por trabalho escravo. A reportagem procurou, por diversas vezes, os responsáveis pela empresa por telefone e enviou questionamentos por meio de aplicativo de mensagens, mas não obteve resposta.
A grife Amissima não respondeu às perguntas enviadas por email até a publicação desta reportagem.
A Repórter Brasil não conseguiu contato com representantes ou advogados da marca Nakepe Creações.
Em novembro de 2017, sete imigrantes bolivianos foram resgatados em uma oficina de costura no bairro Catumbi, na capital paulista.
Os costureiros produziam peças para a Fitwell, marca especializada em moda feminina, moravam na oficina de costura e exerciam jornadas de mais de 12 horas diárias, segundo o relatório de fiscalização ao qual a Repórter Brasil teve acesso.
Em março do ano seguinte, uma operação conjunta entre auditores fiscais do Ministério do Trabalho, procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT) e agentes da Polícia Rodoviária Federal identificou outros sete bolivianos numa casa adaptada para abrigar três oficinas de costura, no bairro Vila Nhocune, também em São Paulo (SP).
Os trabalhadores costuravam para a Cotton Colors Extra, outra marca de moda feminina.
Em novembro de 2018, um grupo de 14 costureiros foram resgatados em duas oficinas responsáveis pela produção das peças da grife Amissima.
À época, a submissão de trabalhadores a condições análogas à escravidão para a produção de roupas da marca repercurtiu na mídia.
Outra marca, a NaKepe Creações, foi autuada em maio de 2019 por submeter 22 trabalhadores a condições análogas à escravidão.
Os costureiros, de origem boliviana e peruana, trabalhavam 13 horas diárias e tinham dívidas com os empregadores referentes às passagens de ônibus para o Brasil, além de serem obrigados a pagar pela alimentação e alojamento.
A Confecções Anchor Ltda foi autuada, em agosto de 2019, por trabalho análogo à escravidão e tráfico internacional de pessoas, após uma denúncia recebida pelo Consulado do Peru no Brasil.
Na ocasião, 13 trabalhadores de origem boliviana e peruana foram resgatados -dentre eles, três adolescentes.
As cinco marcas não integram o cadastro de empregadores flagrados com mão de obra em condições análogas à escravidão, a chamada “lista suja”.
Isso porque, após a autuação por parte dos auditores fiscais, as empresas ainda podem recorrer em duas instâncias administrativas no Ministério do Trabalho.
Porém, protocolos internacionais indicam a responsabilidade de empresas de prevenir e reduzir os riscos relacionados à comercialização de produtos que violem direitos humanos, como a cartilha dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas.
Ao gerir a plataforma de venda e garantir a entrega ao consumidor final, o marketplace faz parte da cadeia de fornecimento do produto e pode ser responsabilizado pelas irregularidades associadas ao comércio do item em questão, avalia a advogada Luciana Lotto, autora do livro “Ação civil pública trabalhista contra o trabalho escravo no Brasil”.
“Quando o marketplace permite que uma determinada marca de roupa venda em sua plataforma, está respondendo solidariamente [também é responsável].”