Partido de Bolsonaro desvirtuou uso do fundo partidário
Foto: Cristiano Mariz
Partido do presidente Jair Bolsonaro desde novembro, o PL gastou parte do dinheiro público a que teve direito no ano passado com empresas dirigentes da legenda e seus familiares. Levantamento feito pelo GLOBO com base nas prestações de contas entregues à Justiça Eleitoral mostra que a sigla desembolsou cerca de R$ 1 milhão em despesas como serviço de frete da sogra de um comandante de diretório, aluguel de um imóvel pertencente a um deputado e consultoria de um membro da agremiação. Além disso, os recursos foram utilizados para comprar um carro que sumiu do mapa e um curso virtual que está fora do ar. Procurado, o PL não se manifestou.
Os recursos do fundo partidário são administrados pelo comando nacional de cada legenda, que fica com uma parte e distribui o restante entre os diretórios dos estados. De acordo com a legislação, esses recursos devem ser aplicados para despesas como aluguéis de suas sedes e salários de funcionários, mas também podem bancar gastos de campanhas eleitorais neste ano.No ano passado, o PL, chefiado pelo ex-deputado Valdemar Costa Neto, recebeu R$ 53 milhões, mas declarou ter gastado menos da metade, R$ 19 milhões, deixando o valor restante no caixa da legenda.
O diretório do Piauí foi o que mais recebeu: R$ 1,6 milhão. Parte desse valor foi usada para contratar serviços prestados por empresas de integrantes da família do então presidente da sigla no estado, o deputado estadual Fábio Xavier: a legenda desembolsou R$ 43,5 mil por “materiais impressos”, para uma microempresa que pertence à mulher de Xavier. O partido também pagou R$ 55 mil em aluguel imobiliário para a cunhada do dirigente do partido. E gastou mais R$ 72 mil em um serviço de fretes e carretos prestado pela empresa da sogra dele.
Esses gastos constam nos relatórios do PL enviados ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), embora as notas fiscais não tenham sido anexadas ao processo. Procurado, Xavier afirmou que consultou o departamento jurídico do partido antes de fazer tais contratações e que a área avalizou os negócios envolvendo integrantes de sua família e suas respectivas empresas.
Todas essas despesas ocorreram no período em que Xavier presidia o PL no estado. Hoje, porém, ele não está mais no partido. No início deste ano, após Bolsonaro ingressar no PL, Xavier deixou a legenda e se filiou ao PT. Desde então, o diretório da sigla no Piauí é presidido por Samantha Cavalca, apoiadora do presidente.
Ela relatou ao GLOBO não saber o paradeiro de um carro de R$ 179 mil comprado pelo partido durante a gestão de seu antecessor. Diz ainda que nem sequer sabe qual é a marca do automóvel e que só tem conhecimento do gasto porque ele está no extrato entregue ao TSE:
— Se ficar comprovado que Fábio Xavier comprou um carro com o dinheiro do fundo partidário, o PL do Piauí vai querer esse carro. Não nos foi passado nada, muito menos um carro — disse Cavalca.
Ao GLOBO, Xavier confirmou a compra do carro. De acordo com ele, o automóvel é utilizado pelo diretório municipal de Regeneração (PI), cidade de 17 mil habitantes a 145 quilômetros de Teresina. Ele alega que nunca foi procurado pela atual presidente do partido para tirar qualquer dúvida a respeito do assunto.
Outro gasto do PL, de R$ 168,9 mil, se deu com a contratação da M2G Consultoria e Assessoria. Um de seus sócios é Garigham Amarante, diretor do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e homem de confiança do presidente da legenda, o ex-deputado Valdemar Costa Neto.
Para comprovar a prestação dos serviços, a empresa precisa apresentar relatórios informando ter prestado consultoria ao partido sobre temas relacionados ao Ministério da Educação e ao FNDE, justamente o órgão em que Amarante é diretor.
Nos documentos enviados à Justiça eleitoral, a consultoria relatava informações sobre reuniões de seus executivos. Esse material expõe uma coincidência das agendas da empresa e de Amarante. Em 21 de setembro de 2021, a consultoria registra uma reunião com o ex-deputado Henrique Oliveira. No mesmo dia, segundo a agenda oficial de Garigham Amarante no FNDE, há o registro de um encontro com o mesmo ex-parlamentar.
Procurado, Henrique Oliveira disse que conhecia Garigham desde a época em que o diretor ainda trabalhava como assessor na Câmara dos Deputados. Segundo ele, o encontro no FNDE foi para parabenizá-lo pela indicação para o cargo. Os dois, ainda de acordo com Oliveira, se reuniram a sós, sem a participação de outra pessoa. Questionado se conhecia alguma empresa chamada M2G, o ex-deputado negou.
Pela lei, ocupantes de cargos como o de Garigham Amarante podem integrar o quadro societário de empresas, desde que não figurem como sócios-administradores. Procurado pelo GLOBO, ele afirmou que não é sócio-administrador da M2G e que “não presta, pessoalmente, tal serviço a nenhum partido político”. Alega ainda que a M2G “presta serviços de natureza técnica, com base em informações de fontes abertas e, portanto, não há incompatibilidade entre a atividade de servidor público e a condição de sócio-cotista da M2G”.
As contas enviadas pelo PL ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) revelam que uma das maiores despesas do comando nacional da legenda ocorreu por meio do PL Mulher, o braço do partido que deve promover a participação feminina na política, uma obrigação legal.
Duas empresas com o mesmo sócio, Henrique de Lima Vieira, próximo a um parlamentar da sigla, Zé Vitor (PL-MG), receberam R$ 606 mil do partido para montar um sistema de ensino à distância. O site com os cursos que teriam sido fornecidos, contudo, está fora do ar.
Em uma das notas fiscais, a empresa Cidade Positiva consta como beneficiária de R$ 14 mil pela administração do site Reaja, Mulher. Entretanto, o endereço nem sequer foi registrado. Também foi pago pela criação de perfis no Twitter (mulherreaja) e Instagram (Reajamulherdigital), dos quais não há qualquer registro.
Sócio das empresas, Henrique Vieira se apresenta como fotógrafo e já prestou diferentes serviços para Zé Vitor, inclusive tirando fotos do casamento do parlamentar. Nas redes, ele chama o deputado de amigo.
Em contato com O GLOBO, Vieira afirma que jamais cometeu qualquer irregularidade. Segundo o fotógrafo, os conteúdos ligados ao PL Mulher já saíram do ar em razão do fim do contrato firmado com o partido. Vieira explicou que o curso de formação começou inicialmente em Minas Gerais e que foi Zé Vitor quem levou o projeto de ensino à distância ao PL Mulher.
— A gente tinha plataforma para cada estado, e as interessadas tinham que cumprir o mínimo de aulas. Foram mais de três mil inscrições e 997 pessoas terminaram o curso — disse Vieira.
O GLOBO pediu acesso aos registros das pessoas que se inscreveram e terminaram o curso, mas Vieira afirmou que o contrato previa confidencialidade, assim como questões de privacidade previstas na Lei Geral de Proteção de Dados.
Além de receber pelo PL, a Cidade Positiva foi contratada pelo gabinete de Zé Vitor para fazer a divulgação parlamentar do deputado. Por esse serviço, já foram pagos R$ 438 mil pela Câmara dos Deputados. A empresa também administra o Hora Minas, site registrado em nome de Zé Vitor, que divulga informações positivas sobre o trabalho do deputado. Vieira nega que o deputado hoje tenha qualquer relação com o site.
Procurado, Zé Vitor não atendeu à reportagem. O PL também não comentou sobre os gastos nos diretórios estaduais e no PL Mulher.
No Tocantins, a lista de gastos do diretório estadual em 2021 incluía R$ 10 mil de aluguel de um escritório que pertence ao então presidente estadual, o deputado Vicentinho Júnior. Segundo o parlamentar, dono do imóvel, o valor está abaixo da média de mercado.
— O aluguel da sala aqui no prédio era mil reais (por mês). Se você fizer uma consulta, aqui é R$ 1,2 mil o aluguel. Fica meu escritório em uma sala, e a sede do PL ficava em outra sala, de frente — afirma Vicentinho, que saiu recentemente do PL e se filiou ao PP.
Para Carlos Ari Sundfeld, professor de direito público na Fundação Getulio Vargas (FGV), partidos políticos têm caráter público, e os casos de contratações de pessoas próximas são potenciais lesões ao patrimônio público.
— Esses casos potencialmente são casos de lesão ao partido e, por consequência, aos cofres públicos. Mesmo em uma empresa privada, não é possível usar os recursos em benefício pessoal, lesando a entidade que você administra.
Segundo Luiz Fernando Pereira, coordenador-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Política (Abradep), a Justiça eleitoral tem tratado “com lupa” casos como estes nos últimos anos, exigindo mais transparência no caso de contratação de “partes relacionadas”, como parentes, com dinheiro público.
— Esses gastos devem atender aos princípios constitucionais da impessoalidade, transparência, razoabilidade, economicidade. O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) tem exigido que a contratação de parentes seja razoável e proporcional e, nesses casos, vai haver uma exigência maior para verificar se o serviço foi de fato prestado.