Bolsonaro já foi defensor das urnas eletrônicas

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Foto: BBC/ARQUIVO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS

Bolsonaro, então filiado ao PPR (Partido Progressista Reformador) de Paulo Maluf, discursava para coronéis e generais da reserva na sede do Clube Militar do Rio de Janeiro em um evento para discutir a “salvação do Brasil”. Fazia uma defesa da nascente urna eletrônica como um antídoto contra fraudes que ocorriam no voto impresso.

A maior parte da reunião, segundo o Jornal do Brasil da época, ocorreu sob sigilo, com os participantes divididos em seus planos para a retomada do poder. Uns defendiam o lançamento de candidaturas para as eleições de 1994. Outros, como Bolsonaro, sustentavam que a via democrática era um “sistema viciado”.

“Independente das pequenas divergências, nós já somos uma força política, e estamos crescendo”, disse no evento do clube militar Euclydes Figueiredo (1919-2009), irmão de João Figueiredo (1918-1999), último presidente da ditadura militar brasileira. “Não queremos o golpe, mas eles nos temem”.

No final daquele ano, enumeraria as providências que julgava necessárias para garantir a lisura do processo eleitoral — entre elas, a proibição do voto dos analfabetos, a exigência de segundo grau (o antigo ensino médio) para os candidatos e a informatização das eleições.

“Só com essas medidas conseguiríamos evitar os votos comprados”, disse.

As declarações contrastam com uma das principais plataformas do atual presidente da República: lançar desconfiança sobre a lisura da urna eletrônica.

As investidas de Bolsonaro contra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) vêm se acirrando desde 7 de outubro de 2018, com a definição do segundo turno contra Fernando Haddad (PT) na última disputa presidencial.

“Lamentavelmente, o sistema derrotou o voto impresso”, disse o então candidato presidencial do PSL. “Se tivéssemos confiança no voto eletrônico, já teríamos o nome do futuro presidente da República decidido no dia de hoje”.

No último dia 14 de julho, o Ministério da Defesa sob comando de Bolsonaro sugeriu, para as eleições de 2022, uma votação paralela em cédulas de papel, sob a justificativa de testar a confiabilidade do sistema eletrônico.

Quatro dias depois, em meio a uma reunião com embaixadores estrangeiros no Palácio da Alvorada, Bolsonaro criticou ministros do TSE e do Supremo Tribunal Federal (STF), acusando-os de sabotar eventuais medidas de transparência.

Em 1994, ano em que Bolsonaro se reelegeu para a Câmara dos Deputados, a inflação e o Exército assombravam os debates políticos no país.

Era também o início do Plano Real.

A medida provisória nº 434, publicada no final de fevereiro de 1994, instaurava a Unidade Real de Valor (URV), empregando-a como referência nas conversões financeiras para a nova moeda, a ser lançada em junho.

Organizações trabalhistas se opunham aos critérios do governo, por considerá-los prejudiciais aos assalariados. Segundo cálculos do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), as perdas no poder de compra da população oscilariam entre 26% e 55%.

A URV desagradava igualmente ao Exército. De acordo com Bolsonaro, coronéis teriam soldos reduzidos a 5,5 salários mínimos; capitães, a 3,2; e sargentos, a 2,5.

O jornal Tribuna da Imprensa noticiou que, em 1º de março, Bolsonaro discursou na tribuna da Câmara: “Não admito uma política econômica dessa forma. Já que o presidente não é homem, que pelo menos o ministro seja, e assuma de vez esse arrocho”.

Segundo o diário Jornal do Brasil de 12 de março, o atual presidente recomendava “ações de guerrilha, saques e sabotagem” contra o Plano Real para evitar que militares se transformassem em “meros funcionários de quarteis”.

Em 14 de abril, o Congresso aprovou a medida provisória nº 457, que implementava pequenas mudanças à URV, sem incorporar as propostas da oposição.

Bolsonaro, aos berros, alardeou: “Vejam o que eu faço com essa m…”.

Em seguida, dirigiu-se ao senador Ronan Tito (PMDB-MG), que segurava uma cópia do texto, e arrancou o papel de suas mãos, rasgando-o e cuspindo sobre as folhas picadas.

Quatro dias depois, o incidente reverberaria no Clube Militar. Falas do evento foram registradas pelo Tribuna da imprensa — o jornal que mais citaria o parlamentar ao longo dos anos 1990.

“Hoje não preciso cuspir em ninguém. Aqui, estou entre amigos”, discursou Bolsonaro, de volta ao local.

“Mas não posso dizer o mesmo do Congresso, que é uma pocilga.”

Rubens Ricupero, que substituíra Fernando Henrique no Ministério da Fazenda, foi o maior alvo do deputado naquela segunda-feira: “Esse ministro Bozo Ricupero está fazendo papel de palhaço ao dizer que as medidas protegem salários”, acusou.

“O Plano Real só dura até o dia 3 de outubro, para eleger o canalhão do FHC. Tenho imunidade para falar o que quero, não para roubar.”

Fernando Henrique se demitira para disputar o comando do Executivo pelo PSDB. Luiz Inácio Lula da Silva, seu principal adversário, concorria à presidência pelo PT.

O golpe de 1964 completava três décadas, e sua memória vinha sendo relativizada por diversas candidaturas militares menos de dez anos após a redemocratização.

No Clube Militar, uma plateia de 200 oficiais aplaudiu a fala de Bolsonaro.

Mas Euclydes Figueiredo externou certa ressalva: “Já dei conselho para ele falar tudo o que queira do Congresso, desde que não use adjetivos”.

Numa sexta-feira, 12 de agosto, cem militares da reserva se aglomeraram em frente ao Palácio Duque de Caxias, no centro do Rio de Janeiro. Insatisfeitos com os próprios salários, entoavam palavras de ordem: “Melhor sobreviver na ditadura que morrer nessa democracia”.

Bolsonaro liderava a manifestação. Como prova dos baixos vencimentos recebidos pela categoria, ostentou uma xerox do seu contracheque de parlamentar, lado a lado com o de um general e o de um juiz.

“Desafio o presidente da República a divulgar na imprensa os contracheques dos funcionários das estatais, do Banco Central, dos auditores fiscais, entre outros”, declarou à Tribuna da Imprensa. “Eles financiam a campanha do FHC com o que roubam dos civis e militares”, acusou o congressista, sem apresentar provas.

Os militares planejavam disputar eleições majoritárias naquele ano.

O general Newton Cruz (1924-2022), candidato ao governo do Estado pelo PSD carioca, mostrava-se otimista com o futuro dos militares junto à opinião pública: “A maioria da população do Rio prefere um governador que não seja político”, afirmou o general.

“A todo momento, a gente ouve que antigamente era melhor, que as coisas não eram tão ruins quanto hoje”.

Em agosto daquele ano, pesquisas do Instituto Gerp revelariam que o general tinha apenas 4% das intenções de voto no estado, contra 10% de Jorge Bittar (PT), 24% de Marcello Alencar (PSDB) e 27% de Anthony Garotinho (PDT).

Cruz, porém, questionou as estatísticas: “O que vale é o que estou vendo nas ruas”, disse. “Pelo que li, o estudo foi pago pelo PT. Não quero discutir com nenhum instituto, mas não acredito nessa pesquisa. Se for verdade, tem muita gente mentindo para mim.”

Enquanto isso, Bolsonaro se dizia ignorante sobre política.

Um jornalista da Tribuna da Imprensa perguntou o que ele achava da coligação de seu PPR com o PSD de Newton Cruz: “Eu não entendo nada de política, não tenho a mínima ideia”, respondeu.

“Só estou aqui no cantinho, com o meu pessoal.”

Mas o capitão mostrava-se desconfortável com outros colegas de caserna que adentraram a política: “Alguns querem apenas atrapalhar o trabalho dos mais bem situados”, reclamou.

A declaração foi vista como uma indireta a Sérgio Porto da Luz — oficial da Marinha, assessor legislativo e candidato a deputado federal pelo PMDB.

“Há lugar para todos”, defendeu-se Porto da Luz. “Bolsonaro diz no programa eleitoral que os demais candidatos não fizeram nada pelos militares, quando na verdade é ele quem rouba as ideias dos outros.”

Numa quinta-feira, 10 de novembro, o oficial da Marinha prestou queixa no 22º DP da Penha, acusando Bolsonaro e outros seis homens de terem agredido seus eleitores na campanha de segundo turno.

O ataque, segundo Porto da Luz, teria provocado ferimentos nas mãos e braços das vítimas, entre elas um sargento, Eurico Pamplona, e sua filha, Andrea Lisboa.

Bolsonaro narrou uma outra história: dizia ter se apoderado dos panfletos que seus adversários distribuíam pela Avenida Brasil, e descartado o material num bueiro.

Negava, entretanto, quaisquer agressões físicas: “Porto da Luz é homossexual passivo e recalcado”, declarou à Tribuna da Imprensa. “Não vou comprar briga com ele”.

O segundo turno para governador do Rio de 1994 seria disputado entre o ex-prefeito do Rio Marcello Alencar (PSDB) e o ex-prefeito de Campos dos Goytacazes Anthony Garotinho (PDT). O tucano acabaria vencendo.

Mas o Legislativo fluminense também teve uma nova eleição no segundo turno porque a votação para deputado ocorrida no primeiro turno foi anulada.

Jairo Vasconcelos do Carmo, juiz da 13ª Zona, anulou os votos de uma urna mal lacrada na 923ª seção. Na 890ª, teriam sido encontradas pelo menos 20 cédulas não assinadas pelos mesários.

Na 1ª Zona, o juiz Fernando Cabral descobriu irregularidades em 185 cédulas — de acordo com uma reportagem publicada pelo Jornal do Brasil, todas elas beneficiavam um candidato militar.

“Isso abala a credibilidade da democracia”, lamentou a deputada Cidinha Campos (PDT). “O início de tudo é a fraude eleitoral. O parlamentar já chega ao Congresso roubando”.

A sede do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), no centro da capital fluminense, teve sua vigilância reforçada após o recebimento de um telefonema anônimo com ameaças de morte a Youssef Salim Saker, presidente do Tribunal, ao procurador Alcir Molina e ao então juiz e atual presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, que ordenara a recontagem de 380 mil votos na 25ª Zona.

“Isso parte de um grupo de pessoas contrariadas com meu trabalho contra as fraudes”, declarou Fux. “Mas vou jogar duro até o final”.

No dia 19 de outubro, o TRE decidiu, por unanimidade, anular as eleições para deputado no Rio de Janeiro — um novo pleito, em 15 de novembro, ocorreria paralelamente ao segundo turno para governador.

Bolsonaro, eleito na disputa cancelada, apoiava a medida: “Claro que roubaram meus votos”, declarou.

O TRE requisitou o apoio das Forças Armadas para o monitoramento dos colégios eleitorais na nova votação.

As tropas do Exército, contudo, mostraram-se incapazes de deter as irregularidades no dia.

Luiz Noronha Dantas, juiz da 25ª Zona, descobriu, numa única urna, 12 cédulas preenchidas com a mesma caligrafia, todas em benefício de um candidato a deputado estadual pelo PSC.

“A semelhança é incontestável, por isso decidi anular os votos”, explicou o magistrado ao Jornal do Brasil.

Um procedimento similar envolveu os nomes de outros candidatos a deputado. A falsificação, nesse caso, era mais sofisticada: “As caligrafias se repetem de quatro em quatro e de dois em dois votos”, disse Dantas.

Bolsonaro mostrava-se confiante: “Em 3 de outubro, fui o mais votado aqui na 13ª Zona. A presença do Exército ajuda a inibir fraudadores, mas houve falhas. As Forças Armadas deveriam ter realizado o transporte das urnas até os locais de apuração”.

Horas depois, o juiz Nelson Carvalhal, da 24ª Zona, descobriria quatro cédulas falsas, impressas em papel mais fino.

Beneficiavam quatro candidatos, entre eles Bolsonaro.

A BBC News Brasil entrou em contato com a assessoria de imprensa do presidente, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.

Essa prática frequentemente vinha associada a um tipo específico de fraude, conhecido por “voto formiguinha”: o eleitor inseria na urna uma cédula falsa, e em seguida repassava a terceiros uma autêntica. O cúmplice, depositando de forma irregular a cédula recebida fora da seção, por fim subtraía outra, encaminhada a um novo fraudador — e assim sucessivamente.

Semelhante esquema levou Suimei Cavalieri, juíza da 82ª Zona, a impugnar os 350 votos de uma urna. “Estamos peneirando tudo”, anunciou a magistrada. “Aqueles que conseguiram fraudar na votação, estão sendo descobertos agora”.

Bolsonaro recebeu 134.643 votos — a terceira maior votação no Estado entre os candidatos a deputado federal.

Também naquele segundo turno de 1994, em cinco seções do Educandário Imaculada Conceição, tradicional colégio católico no centro de Florianópolis, ocorria mais uma experiência do nascente voto eletrônico na história política brasileira.

Fruto de uma parceria entre a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), envolveu cerca de 1.880 eleitores.

Paulo Afonso Vieira, candidato a governador pelo PMDB, obteve 987 votos, contra 795 de Ângela Amin, do PPR. Os terminais contabilizaram 12 votos brancos e 86 nulos.

Em entrevista concedida à Rádio Nacional na manhã do dia anterior, Sepúlveda Pertence, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), defendera o novo sistema como única forma de se evitar fraudes: “Esperamos que esse acontecimento chame a atenção do Congresso Nacional para a necessidade inadiável de chegarmos à limpidez completas das eleições brasileiras”, declarou.

A total informatização do pleito, alegava Pertence, era um caminho quase certo — cerca de 3.500 microcomputadores já haviam sido entregues às zonas eleitorais para os trabalhos de apuração.

O último passo seria o processamento eletrônico dos votos, dentro da própria urna: “Se pararmos na construção da rede, teremos construído um robô moderníssimo com pés de barro”, disse.

As urnas eletrônicas seriam oficialmente implementadas em 1996 — na ocasião, eleitores de 57 municípios escolheram prefeitos e vereadores pelo novo sistema.

Em 2000, a informatização atingiu pela primeira vez a totalidade do eleitorado. Hoje, ela permanece na mira do Poder Executivo.

BBC