Ciro surta e vê Lula e Bolsonaro ‘iguais’
Foto: Wenderson Araújo/Valor
As articulações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para tentar viabilizar uma vitória no primeiro turno da eleição presidencial fazem dele “um fascista quase tão grave quanto Jair Bolsonaro”. Quem afirma é o candidato do PDT ao Planalto, Ciro Gomes, que ainda aposta no crescimento da rejeição dos líderes nas pesquisas para chegar ao segundo turno.
Em entrevista ao Valor, Ciro disse que pretende usar até US$ 80 bilhões das reservas internacionais do país para ajudar a financiar seu programa de governo. Esses recursos seriam aplicados, por exemplo, em um fundo soberano que vai ajudar empresas endividadas e na aquisição de ações da Petrobras.
O candidato também garantiu que, apesar de propor um programa econômico expansionista nos gastos, seu governo terá uma âncora fiscal, que será o superávit das contas públicas. Ele se manifestou contra a manutenção do valor de R$ 600 para o Auxílio Brasil. “Completamente inadequado”, disse ele, referindo à inflação mais elevada entre as pessoas de baixa renda.
Sobre os riscos à democracia implícitos no processo eleitoral, disse acreditar que Bolsonaro não irá aceitar a derrota, mas que não terá respaldo para liderar qualquer tipo de ruptura institucional. “Ele não vai perder para o Lula normalmente. Não tem psicologia pra isso e nem vocação democrática”, disse o pedetista.
A seguir os principais trechos da entrevista:
Valor: O senhor não tem avançado nas pesquisas. Que cenário poderá levá-lo ao segundo turno?
Ciro Gomes: Nós, operadores da política, tentamos construir os fatos da maneira como gostaríamos. Meu esforço é construir o seguinte: quem era o (Wilson) Witzel dez dias antes da eleição no Rio? Quem era o (Romeu) Zema em Minas? Por isso Lula é tão angustiado. Por que não fica quieto? Por que está atrás de excluir a candidatura da Simone, do Janones, atrás de acordo? Porque ele é um campeão. Sabe que eu indo ao segundo turno, ele perde.
Valor: Mas qual seria o seu eleitorado potencial?
Ciro: Se você botar o critério crê ou não em Bolsonaro ou Lula, 70% está lá e 30% não está. Esses 30% não estão todos comigo, mas não estão com eles, eu tenho uma parte. Depois, do eleitor do Lula, um em cada três vota nele por um motivo: o Bolsonaro. Nas pesquisas qualitativas, ele morre. Dos 27% do Bolsonaro, 9% o motivo é evitar o PT voltar. Se falar que os filhos são ladrões, teve corrupção com vacina, ele cai. Tirei quase 14 milhões de votos em 2018, com as unhas, com 37 segundos de campanha. Agora que eu tenho uma estrutura, a 14% ou 15%, vou ligeiro. Aí começarei a ser atacado. Eu sou disparado a segunda opção tanto dos eleitores do Lula quanto do Bolsonaro.
Valor: De cada dez pessoas que declaram o voto em Ciro Gomes, quatro votariam em Lula no segundo turno. Se o senhor não avançar, quanto sua mobilização pessoal pode interferir nos números?
Ciro: Você tem que ver quantos eleitores do Lula têm como segunda opção a mim. E quantos do Bolsonaro. Sou disparado o segundo candidato dos dois. Dos três, eu tenho a menor rejeição. Você tem que ler a dinâmica preferência e rejeição. O fio desencapado sou eu, e eles sabem disso. E eles estão na exposição máxima, eu na mínima. Vocês não têm ideia do que vai acontecer com a rejeição quando eles começarem a se enfrentar.
Âncora fiscal é essencial para libertar o Brasil da dependência do juro. A gente […} tem que ter saúde fiscal para não depender”
Valor: Por isso eles se recusam a participar de debates?
Ciro: Evidentemente. É uma simbiose. Lula não resiste a qualquer candidato que não seja Bolsonaro. E Bolsonaro não resiste a qualquer candidato, inclusive o Lula. Mesmo assim, o mais fácil para Bolsonaro é enfrentar o Lula.
Valor: Quanto do seu eleitorado o senhor pode mobilizar para acompanhar a sua posição política no segundo turno, caso não esteja lá?
Ciro: Psicologicamente, eu rejeito essa ideia. Já fui muito purista de considerar essa hipótese, mas não tem cabimento. Acordei às 4 horas da manhã, atendi duas conferências, vou falar com jornalistas. Se eu não acreditar
Valor: Mas é que o senhor pode ter um papel decisivo no resultado da eleição.
Ciro: O problema é dele, Lula. Imaginar que eu sou desavergonhado ele não tem direito, porque me conhece. Imaginar que eu blefo, ele sabe que eu não blefo. O que ele está fazendo no Ceará, no Rio de Janeiro, no Maranhão, o que está fazendo com a Simone Tebet, de tirar o direito da pessoa ser candidata, faz dele um fascista quase tão grave quanto o Bolsonaro. E pronto, é isso que eu penso.
Valor: Em 2018 o senhor foi acusado de se omitir no segundo turno para evitar a vitória do Bolsonaro.
Ciro: Os números existem para a gente se proteger da molecagem dos políticos. Veja quantos votos eu tirei e quantos votos o Haddad teve no segundo turno. Eu tinha força de dar ao Haddad mais votos do que tirei pra mim mesmo? Só um canalha como o Lula faz isso.
Valor: Mas sua participação na campanha não poderia ter ajudado o Haddad a ter mais votos?
Ciro: Em nome de quê? Lula mentiu para o povo. Dizendo, de dentro da cadeia, que era candidato sabendo que não poderia. Ele me convidou pra fazer essa farsa junto com ele. Na época eu mandei um palavrão de volta. E aí ele lança quem? Alguém cujo histórico era perder a eleição pra nulo e branco um ano antes.
Valor: O senhor disse que Ciro-Haddad seria a “chapa dos sonhos”.
Ciro: Ele meu vice, claro que era. Porque me permitiria resolver o principal problema que era o antipetismo como força dominante no Brasil – antipetismo ainda vivo. Nas últimas eleições municipais, com o Lula presente, o PT perdeu em todas as capitais. O Lula planejou o que está acontecendo. Planejou o Bolsonaro eleito presidente, desastrar o Brasil e ele voltar oferecendo picanha e cerveja.
Valor: O senhor tem investido muito em se apresentar como um candidato com propostas e um projeto de governo pronto. Por que isso não se reverte em apoio?
Ciro: Porque isso se dá em universos distintos. Quem resolve a eleição é o universo popular. Quem dá esses conceitos é o universo da elite, os políticos. Sou um abolicionista em terra de escravistas. No meio do povão esses atributos não são reconhecidos.
Valor: O João Santana não veio pra te ajudar nesse problema?
Ciro: E está ajudando. As pessoas estão aumentando a curiosidade, sou a maior audiência do TikTok, entre jovens já estou prevalecendo. A dinâmica está acontecendo. Vamos ver se será eficaz. Se não for, o Brasil vai me dar o lugar do cara que poderia ter sido e não foi.
Valor: Depois desse palavrão enviado ao Lula, vocês ainda se encontraram pessoalmente, há dois anos. Como foi essa conversa?
Ciro: Teve coisa de todo tipo. Choramos. Mas ele mente. Lula não tem escrúpulo de nenhuma natureza.
Valor: O que na sua visão acontecerá com o país em caso de reeleição do Bolsonaro ou volta do Lula?
Ciro: Só aprofundar o que tá aí: país dividido. Ódio, paixão e morte de inocentes. Se o Bolsonaro sentir que o chão vai lhe faltar, vocês vão ver o que vem por aí. Na cabeça dele o delírio é completo. Dos 16 comandos militares, 12 são antagônicos a ele. E eles não brigam entre si. Hoje temos banqueiros assinando manifesto pela democracia. Em 64, apoiavam o golpe. Ele pode fazer besteira, pode renunciar, qualquer coisa. Mas ele não vai perder para o Lula normalmente. Ele não tem psicologia pra isso e nem vocação democrática.
Valor: Como seria um terceiro governo Lula?
Ciro: Uma tragédia grande. A margem pra aumentar juros não existe mais. Ele não tem lucidez disso, não quer ouvir e o quadro técnico ao lado dele é de oitavo nível. Quando chegar lá, uma conta impagável com Renan Calheiros, Eunício Oliveira, MDB, Guilherme Boulos, ministério pra todo mundo. Tudo num cenário completamente diferente de 2003. E a expectativa do povão é cerveja e picanha. Ele vai botar um banqueiro na Economia, entregar as políticas de papo-furado – mulher, índio e negro – para o PT se divertir, a política e o Orçamento pro Centrão e vai passear no estrangeiro.
Valor: O senhor tem mencionado o uso das reservas internacionais como fonte de recurso para algumas de suas propostas. Quanto pretende usar desse colchão?
Ciro: Reserva cambial não é coisa que você possa gastar em estrada. Corresponde a um dólar que o governo brasileiro não tinha, que tomou dinheiro emprestado a 14%, em real, comprou dólar e guardou as reservas aplicadas a zero. Portanto, essa reserva corresponde a um passivo na dívida brasileira. Um país deve ter em reservas ao redor de um ano e meio de importação, o Brasil tem quase três anos. Eu posso perfeitamente, se eu não fizer um gasto corrente, usar uma fração pequena deste dinheiro, fazer um fundo soberano para emprestar esse dinheiro.
Valor: Mas quanto seria usado?
Ciro: Temos US$ 360 bilhões em reserva. Creio que US$ 70 a US$ 80 bilhões são suficientes. Meu projeto tem começo, meio e fim. A grande questão da instabilidade no câmbio e no juro do Brasil é a insustentabilidade da dívida no tempo por causa do fluxo fiscal. Eu tenho como consertar o fluxo fiscal como ninguém tem, uma proposta concreta. Por exemplo, se eu corto 20% das renúncias fiscais, eu acabo com o déficit primário desse ano.
Valor: Seu programa de governo propõe aumento dos gastos públicos. Como fazer com que os juros fiquem controlados e pessoas e empresas não voltem a se endividar? Haverá alguma âncora fiscal?
Ciro: Âncora fiscal é essencial para libertar o Brasil da dependência do juro. A gente não tem que ter responsabilidade fiscal para ter confiabilidade do sistema financeiro. Tem que ter saúde fiscal para não depender do sistema financeiro.
Valor: E qual será o indicador?
Ciro: Arrecadação versus gasto, ué. Superávit. Não superávit contábil, mas para contar na ampla expansão do investimento, que será feito de forma seletiva. Vamos pegar todas as demandas por infraestrutura do país e ver aquelas que podem ser concluídas mais rapidamente. Imposto de Renda, vou aumentar a faixa de isenção, diminuir a alíquota menor, para 7,5%, e vou criar uma alíquota de 35%. Vou acabar com a pejotização da pessoa física. Vou recriar impostos sobre lucros e dividendos. Vou introduzir imposto sobre grandes fortunas. Eu tenho estudado tudo isso. Só eu falo, e ainda tenho que ir no detalhe, no operacional, enquanto o Lula vai oferecer picanha e cerveja. Tenha paciência.
Valor: Lula e Bolsonaro estão sinalizando a manutenção do Auxílio Brasil em R$ 600. Qual a sua posição sobre esse tema?
Ciro: Desde 2018 tenho pronto um projeto de reforma previdenciária. Não sou um clientelista como Lula nem um picareta como Bolsonaro. Na Previdência Social que eu proponho, são três pernas: primeiro, um programa de renda mínima moderno aos moldes do [proposto por] Eduardo Suplicy, que estará disponível para todos os brasileiros, podendo ou não contribuir, cujo funding será BPC, Auxílio Brasil/Bolsa Família, aposentadoria rural mais arrecadação de imposto sobre grandes fortunas.
Valor: Considera que o valor de R$ 600 mensais é adequado?
Ciro: R$ 600 é completamente inadequado. A inflação brasileira, no povão, está em 30%.