Crise afeta saúde mental dos brasileiros
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Entrou para a história do cinema brasileiro uma sequência do filme Terra Estrangeira (1995), de Walter Salles e Daniela Thomas, na qual a personagem de Laura Cardoso sofre um baque depois de assistir a um pronunciamento do governo na TV. Nas cenas, são usadas imagens de arquivo de 1990, quando a então ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, anunciou o confisco do dinheiro das contas bancárias em uma insana tentativa de conter a inflação alta que castigava o país. Ao descobrir que perdera as economias de sua vida inteira, a aposentada interpretada pela atriz entra em colapso e morre. Situações extremas como a reproduzida no longa exacerbam o turbilhão de emoções que podem ser experimentadas em situações de colapso emocional causadas por dificuldades financeiras, exatamente como a que vivemos atualmente. É sabido que uma das consequências da pandemia de Covid-19 é o imenso impacto econômico nas contas dos países e na vida dos cidadãos, levando a um aperto financeiro tão profundo que deixou a cabeça de boa parte da população imersa em um oceano de estresse.
As estatísticas começam a dar o tamanho de mais esse estrago. Um dos retratos, feito pela Associação Americana de Psicologia, mostra que, neste ano, a inflação em alta entrou para a lista das questões que mais causaram estafa nos últimos quinze anos nos Estados Unidos. Além disso, o incômodo provocado pelo bolso vazio atingiu o nível mais alto desde 2015. No vizinho Canadá, uma pesquisa de 2020, divulgada depois do início da crise sanitária, revelou que o dinheiro, e não a saúde, era a principal causa de prostração, com diferença considerável entre ambos: 38% das pessoas disseram que os malabarismos financeiros eram o que mais lhes tirava o sono, enquanto preocupações com a saúde ocupavam a mente de 25%.
No Brasil, infelizmente, estamos habituados às crises econômicas. Mesmo assim, o tombo financeiro causado pelo vírus está duro de enfrentar e se transformou no principal pesadelo da população, segundo dados da seção nacional da International Stress Management Association (ISMA-BR). Em 2019, 73% dos brasileiros indicaram a incerteza financeira como principal fonte de tensão. Em 2021, a parcela subiu para 78%. Um levantamento do Instituto FSB Pesquisa em parceria com a empresa de seguros SulAmérica feito também no ano passado adiciona outras informações: o aperto financeiro era a primeira preocupação de 47% dos entrevistados e 63% dizem ser crucial reduzir gastos, para o bem da saúde mental.
Na verdade, o peso do rombo nas finanças é o desastre causado pela pandemia que mais demorou a ser sentido. Ao longo desses dois anos e meio, sofremos com o pavor de um microrganismo desconhecido, de adoecer e morrer, de perder as pessoas amadas, do isolamento social e das incertezas profissionais que se apresentaram especialmente no primeiro ano da chegada do novo coronavírus. Agora, a crise sanitária está sob controle. Há vacinas, a tendência de queda de casos se mantém apesar de oscilações periódicas e o total de mortes caiu. Por outro lado, muito da catástrofe financeira se mantém e, pior, deve se prolongar, a serem confirmadas as projeções de recessão global (leia na entrevista de Páginas Amarelas com Carmen Reinhart, economista-chefe do Banco Mundial). Os antigos medos arrefeceram. Sobrou ainda de forma aguda o desafio de lidar com dívidas, falta de emprego, salário que acaba antes do fim do mês. “As pessoas voltaram a trabalhar, mas fica uma dose de incerteza”, diz Marcelo Tokarski, sócio-diretor do Instituto FSB Pesquisa. “Nunca é a mesma colocação, o mesmo salário. Em geral, tudo é mais precário. E isso prolonga o estresse financeiro.” A atual e tensa circunstância aciona o alerta vermelho do ponto de vista dos cuidados psicológicos.
A história ensina que, em cenários econômicos dramáticos, a dor de quem luta para sobreviver pode ser tanta que, por vezes, prefere-se a morte. O suicídio, evento decorrente de depressão profunda, é um dos primeiros atos a crescer. Na Grande Depressão, período entre os anos 1929 e 1932 nos Estados Unidos, que se seguiu à quebra da Bolsa de Valores de Nova York, 25% dos trabalhadores americanos ficaram sem emprego e 4,5 milhões foram para as ruas. Em 1928, um ano antes do Crash, o índice de suicídios era de 18 por 100 000 pessoas. No último ano da crise, 1932, foi para 22 por 100 000, um aumento de 22%. Uma tragédia.
Naquele tempo, o estudo das doenças psiquiátricas patinava em conceitos ultrapassados sobre a mente. Ninguém sabia o que era o estresse mental, muito menos suas causas e sua relação com a depressão e a ansiedade. Hoje, a medicina dispõe de todas essas informações. Por isso, o auxílio aos indivíduos atualmente transtornados pelos débitos está acessível a todos. Há atendimento especializado — isso é importantíssimo — em ótimos serviços públicos de referência, além de psiquiatras de primeira linha para quem pode bancar uma consulta ou conta com um plano de saúde. O decisivo é reconhecer rapidamente os sinais de que o estresse crônico se instalou. Irritabilidade, insônia, perda ou ganho de peso e falta de disposição são sintomas comuns, independentemente do que está por trás da tensão.
Contudo, existem indicativos de quando a raiz é o nó financeiro. Em geral, a pessoa deixa de acompanhar as movimentações de suas contas bancárias, não atende credores e fica enraivecida ao ouvir notícias sobre o cenário econômico. É fundamental aperceber-se disso, embora não seja tão fácil. “As doenças mentais ficam abaixo do radar da consciência”, explica Armando Ribeiro, especialista em gestão do estresse pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos. “Muitas pessoas não percebem que a irritabilidade e a perda da capacidade de ser tolerante são uma forma de estar doente.”
O caminho para reencontrar o equilíbrio exige certa disciplina — aderir aos exercícios físicos é vital, por exemplo —, ajuda médica e medicamento se necessário, e saber usar o que está à mão e de graça. Encontrar-se com os amigos — em casa mesmo, para não gastar —, passear com o cachorro ou dar risada com a série preferida ameniza a tensão e deixa a mente mais arejada para buscar as soluções financeiras possíveis. Negociar as dívidas — e não fugir delas — e estabelecer um teto de gastos é uma estratégia. Há perguntas simples a ser feitas no momento das compras cujas respostas deixarão a situação clara como o dia — a não ser que a pessoa use subterfúgios para se enganar. “Será que eu preciso disso mesmo?; quais são as minhas contas prioritárias?”, indica Virgínia Izabel Oliveira, da Fundação Dom Cabral. Com paciência, organização e apoio, é grande a chance de passar de forma minimamente equilibrada por mais essa crise, um susto da aventura humana.
NA HISTÓRIA
Acontecimentos marcantes na economia de vários países afetaram suas populações
1930
Grande Depressão, nos EUA: 4,5 milhões de americanos ficaram nas ruas e o índice de suicídio aumentou em 22%
1990
Zélia Cardoso de Mello e o confisco de contas bancárias: o estelionato federal causou tragédias
2008
Quebra do banco Lehman Brothers: crise global do sistema financeiro americano