Embate Lula-Bolsonaro divide famílias
Foto: Silvis
Calar-se sobre política foi a estratégia adotada por Marcelo Moretti Fioroni, 52, para conviver com o pai, um bolsonarista de 82 anos. A discordância gerou discussões e a sensação de solidão e angústia.
“Tem horas que eu argumento e chego a bater boca com ele. Nunca imaginei fazer isso”, afirma o engenheiro, que começou a fazer terapia antes da pandemia de Covid e viu as crises devido a debates políticos se tornarem o assunto predominante das sessões. “Virei a ovelha vermelha da família.”
Evandro Botteon, 37, e a sogra Solange Sales Araújo, 61, também selaram um pacto de silêncio há dois meses, após uma discussão durante um jantar da família, em Campinas, virar uma confusão que fez o genro deixar o local. No dia seguinte, vieram o choro de arrependimento e o pedido de perdão.
O petroleiro diz ser uma pessoa “atravessada pela política” e que as relações se acirraram na família a partir de 2018, quando Jair Bolsonaro (PL) se elegeu.
Já a advogada afirma que evita mencionar o nome do presidente para não gerar desconforto e que não vê problema em ter filhos e irmãs com posicionamento diferente. Para evitar brigas com elas, apoiadoras de Lula (PT), diz ter silenciado notificações no WhatsApp.
Na família de Cláudia Alvarenga, 53, o silêncio sobre política começou há mais tempo, desde 28 de outubro de 2018, quando uma cunhada e uma irmã compartilharam postagens celebrando a eleição de Bolsonaro, rebatidas com comentários críticos pelas filhas da empreendedora.
“O problema não é ter uma posição diferente. Só que o diálogo fica escasso, e situações desconfortáveis e sentimentos são empurrados para debaixo do tapete”, afirma Alvarenga. Para ela, a terapia não chega a resolver a questão, que afeta o sono e causa irritação. Evangélica, tem recorrido ao lado espiritual.
Marina, 20, uma das filhas envolvidas no episódio, define a relação familiar como engessada, com regras sobre o que pode ou não ser dito nos encontros. Ela diz ter sido bloqueada nas redes pela tia, que não quis falar com a reportagem.
“Até hoje me sinto um pouco desconfortável, mas bem menos do que antes. Entendo que são posicionamentos diferentes e que não estou aqui para convencer alguém de um lado ou de outro, mas é ruim, porque queria que a gente conseguisse conversar, o que infelizmente não acontece.”
Inferno é a palavra usada pela maquiadora Juliana Thais, 27, moradora de São José dos Campos, para definir o ano de 2018. Ela diz que chorava com os insultos do pai, um bolsonarista. Há dois meses, decidiu se distanciar e morar com o noivo, o que melhorou a relação com o familiar, marcada por provocações.
A mãe de Juliana, a dona de casa Tamára Ulrich Paes dos Santos, 51, identifica-se como de direita. Mas em vez de expressar seu ponto de vista, ela diz que tenta manter a neutralidade em casa, porque a situação familiar “causa tristeza”, com o marido “mais agressivo com parentes do que com pessoas de fora”. Para ela, há imaturidade de um lado e intolerância do outro.
Segundo pesquisa Datafolha realizada de forma presencial com 2.556 pessoas no final de julho, 49% dos eleitores deixaram de falar sobre política com pessoas próximas. A situação atinge 54% dos que declaram voto em Lula e 40% dos que apoiam Bolsonaro. Do total, 15% disseram ter recebido ameaça verbal, e 7%, física. Situações de constrangimento por posições políticas nos últimos meses foram relatadas por 54%.
Professor do Instituto de Psiquiatria e coordenador do programa de pós-graduação em psiquiatria e saúde mental da UFRJ, William Berger afirma que a sociedade tem encarado a política como algo dicotômico e que as brigas e os ressentimentos geram sofrimento psíquico, o que, obviamente, piora a qualidade de vida.
“O suporte social é um dos principais escudos que temos contra transtornos mentais. Quanto maior for o seu vínculo com familiares e amigos, mais protegido está contra o aparecimento de transtornos mentais.”
Para a psicóloga clínica e psicanalista Clara Lins, acabar com os conflitos é impossível e, assim, o maior problema é a forma como lidamos com eles, em especial quando usados para descarregar impulsos destrutivos.
“A gente vê um crescimento do sentimento de desamparo e de solidão, de enfraquecimento do vínculo. É claro que isso vai gerar um aumento do sintoma físico, psicossomático e emocional.”
A psiquiatra Vanessa Flaborea Favaro, diretora dos ambulatórios do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, ressalta que esse cenário é ainda mais impactante para os jovens, por ser um momento da vida de formação da cidadania e participação social mais ampla.
“Os jovens já têm as emoções naturalmente mais afloradas, então acabam ficando muito angustiados, porque querem se posicionar. Eles são muito apaixonados pelas pessoas que defendem”, afirma ela.
Apesar dessa leitura, a socióloga Esther Solano, professora da Unifesp e uma das coordenadoras da pesquisa qualitativa “Juventude e Democracia na América Latina”, realizada com jovens de 16 a 24 anos de Brasil, Argentina, Colômbia e México, diz que o estudo mostrou outra realidade.
“Jovens bolsonaristas que têm pais lulistas e vice-versa simplesmente não falam sobre política na família. O que percebo é um silenciamento. Eles preferem falar em outros círculos sociais a discutir em casa”, diz ela, acrescentando que eles também se censuram na escola, o que afirma ser um legado do movimento Escola Sem Partido, que prevê punições para professores que façam proselitismo político em sala de aula.
Por terem perfil mais combativo, os jovens podem manifestar ansiedade e até crises de pânico, diz Berger, da UFRJ. Entre idosos, a tendência é ficarem mais isolados e apresentarem quadros depressivos. Diante de situações de estresse devido à política, os especialistas destacam que é preciso observar de que forma esses conflitos impactam outras atividades cotidianas, já que há risco de derrames e infartos.
“Quando a gente está estressado cronicamente, há mudanças no corpo. Assim, temos mais chances de desenvolver problemas de pressão ou ligados ao metabolismo, o que provoca muitas doenças cardiovasculares”, afirma Favaro, do Hospital das Clínicas.
A psiquiatra diz que é preciso aprender a relaxar apesar da tensão e criar formas de cuidar da saúde mental de forma mais ampla.
Berger, por sua vez, ressalta que sintomas como irritabilidade, interferência no sono e elevado nível de cansaço diário mostram a necessidade de procurar ajuda. Os cuidados gerais incluem suporte social, atividades físicas e outras opções, como meditação e psicoterapia.
“O primeiro passo é reconhecer que não somos invulneráveis. Depois, é preciso tentar reduzir os estigmas ligados aos transtornos mentais.”