Fundão eleitoral privilegia homens brancos
Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado
Era meados de março deste ano quando a urbanista e professora Carmen Silva foi convidada pelo PSB para ser candidata a deputada estadual por São Paulo. Na ocasião, a sigla havia lhe prometido uma boa estrutura de campanha. Mas faltando três semanas para o pleito, Carmen recebeu apenas R$ 25 mil do fundo eleitoral, segundo dados disponíveis no portal DivulgaCand.
Isso fez com que a postulante chegasse no meio da corrida eleitoral sem ter conseguido impulsionar conteúdos na internet ou fazer viagens pelo interior do estado. Outras campanhas do mesmo porte já gastaram meio milhão apenas com publicidade e atividades de mobilização. O caso de Carmen não é isolado. O atraso no repasse de recursos do Fundo Eleitoral, ou mesmo a ausência dele, tem sido uma realidade na rotina das postulantes.
Dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e da plataforma 72 Horas compilados pelo GLOBO mostram que quase metade das mulheres não recebeu nenhum recurso do fundo eleitoral até o momento, mesmo tendo que repassar, no mínimo, 30% do Fundo para as candidaturas femininas.
Mesmo entre as postulantes que receberam alguma transferência, o valor foi, em média, menor do que o repassado às candidaturas masculinas: de acordo com os dados, homens receberam 40% a mais do que as mulheres até agora. O recorte racial espelha uma desigualdade ainda maior. Em média, brancos ganharam até este ponto da campanha eleitoral 72% a mais do que candidatos autodeclarados pretos e pardos.
— Fazer uma campanha do tamanho da nossa, com capilaridade e mobilização, sem nenhum recurso é inimaginável — diz Carmen, que é ativista pela moradia digna em São Paulo. — Eu estou dialogando com o partido, não somente para mim, mas para todas as candidatas que estão impossibilitadas de seguir com suas candidaturas pela falta de apoio de seus partidos.
O subfinanciamento de mulheres e de candidaturas pretas é, também, uma violência política de gênero, afirma Drica Guzzi. Ao lado de Fefa Costa, ela é coidealizadora da 72 Horas, plataforma de educação política para a participação cidadã no processo eleitoral cujo objetivo é dar mais transparência à distribuição dos recursos de financiamento de campanhas:
— Ainda que a autonomia partidária seja necessária, torna-se importante uma maior democratização interna, transparência e regulação na distribuição dos recursos do fundo especial para que o subfinanciamento eleitoral não se caracterize como violência política de gênero e raça — afirma Drica.
Candidata a deputada estadual no Paraná pelo PSDB, Márcia Reis havia projetado gastos de R$ 170 mil a R$ 200 mil para tomar as medidas necessárias para se eleger. O partido disponibilizou R$ 70 mil, valor, diz ela, inviável para seguir com a candidatura. Márcia procurou o partido para pedir mais verba e, após muita insistência, conseguiu mais R$ 30 mil — totalizando R$ 100 mil —, mas critica a falta de transparência do partido.
Parda e mulher, Márcia diz que se sentiu desrespeitada pela sigla e rotula como “racista e machista” a atitude da legenda. Entre os dez partidos com mais fundo eleitoral, o PSDB é o que distribuiu, proporcionalmente, menos verba do fundo eleitoral para negros. Só 19% dos recursos repassados até agora pelo partido foram destinados a negros — mesmo os pardos e pretos sendo 46% dos candidatos do partido. Uma norma do TSE obriga que a distribuição do fundo eleitoral seja proporcional aos postulantes negros nas siglas.
— Senti que eles estavam achando que eu era uma candidata laranja. Eu chorei muito. Foi uma desigualdade imensa. Nós não tivemos voz. Eu não fui ouvida. Eu me sinto totalmente desvalorizada e desrespeitada — relata Márcia. Por enquanto, ela manteve seu nome na disputa com a ajuda de voluntários que ofereceram ajuda, mas ainda torce para que o partido repasse mais verba.
A não disponibilização de valores para a realização da campanha eleitoral afeta negativamente a política de inclusão de gênero e raça, assim como o atraso no repasse dos recursos, aponta a advogada Lazara Carvalho, coordenadora estadual do movimento Paridade de Verdade e fundadora do Movimento ELO, grupo de juristas que atua contra violações de gênero, raça e direitos humanos.
— Muitas candidaturas quando enfim recebem algum numerário já estão sem fôlego, não atingem o público necessário para serem eleitas, isso quando não provocam o endividamento desses candidatos, que em geral são oriundos de movimentos sociais, do território periférico, provocando a manutenção de um parlamento branco, majoritariamente masculino, com pessoas da elite — afirma a advogada, acrescentando ser necessário estabelecer prazos mais curtos para o repasse e fiscalização da correta distribuição dos valores às candidaturas.
A três meses das eleições, e com a maior parte do Fundo Eleitoral já distribuído, partidos deixam claro que pretendem transformar o repasse mínimo obrigatório de 30% para as candidaturas femininas em um teto.
Segundo dados da plataforma 72 Horas, cinco dos dez partidos que mais receberam os recursos públicos repassaram menos do que o percentual exigido. Os demais transferiram entre 30% e 34%, ou seja, no limite do obrigatório ou próximo dele.
Já o repasse proporcional de verbas de acordo com o número de candidatos que se autodeclaram pretos e pardos, pelo menos até agora, está aquém de ser cumprido. Nenhum dos dez partidos seguiu a regra até o momento. O União Brasil é o que está mais próximo, com uma diferença de um ponto percentual entre o número de candidatos e o percentual transferido.
Como mostrou o GLOBO, já há uma articulação das siglas para não cumprir a decisão do TSE. Apesar de ser improvável, o cenário ainda pode mudar, já que nem todo o Fundo Eleitoral foi distribuído.
O PSDB afirmou, em nota, que “não faz sentido fazer esse tipo de cálculo antes que se termine o repasse”. O PDT disse que está dentro do cronograma de gastos e que todos os repasses ocorrerão nos termos de suas regulamentações até o final da campanha. O PT informou que cumprirá as determinações legais e ressaltou que os recursos do fundo ainda estão sendo liberados pelo partido. O União Brasil disse que destina os recursos financeiros “em estrita observância aos percentuais nacionais de candidaturas femininas e pretas/pardas”. O PSD declarou que os repasses estão em andamento e seguem a legislação. O MDB pontuou que “em 2020, foi o partido que mais elegeu mulheres e negros” e realiza a reserva obrigatória de cargos para mulheres em todos os seus diretórios. Os demais partidos não se pronunciaram.