Manual explica por que pode chamar Bolsonaro de “genocida”
Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo
Um pedido de destaque do ministro Carlos Horbach, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), suspendeu no último final de semana o julgamento no plenário virtual da Corte de uma liminar que manteve no ar vídeos em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chama Jair Bolsonaro de “genocida”.
Com o pedido de destaque de Horbach, o caso agora vai ser analisado na sessão plenária do TSE, transmitida ao vivo pela TV Justiça, em data a ser definida.
A expectativa de integrantes da Corte é a de que a maioria acompanhe o entendimento da ministra Cármen Lúcia, que contrariou o Palácio do Planalto ao não determinar a remoção dos vídeos.
O tema, no entanto, deve abrir divergências dentro do plenário e vai reacender a discussão sobre o papel do TSE ao definir o que pode e o que não pode ser dito contra os candidatos à Presidência da República.
O plenário do TSE ainda precisa pacificar o entendimento sobre “Bolsonaro genocida”, já que no mês passado o ministro Raul Araújo deu uma liminar em sentido diametralmente oposto ao de Cármen.
A decisão de Cármen frustrou aliados de Bolsonaro e impôs um duro revés ao chefe do Executivo, que havia solicitado a remoção dos vídeos por considerar o adjetivo “genocida” uma “grosseira, rude e desinibida” imputação de crime.
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Integrantes da Corte ouvidos reservadamente pela equipe da coluna defendem o entendimento de que a liberdade de expressão deve ser protegida, abarcando inclusive críticas duras e ácidas.
Foi o caso da fala de Lula contra o chefe do Executivo em um evento no Recife, em julho, registradas em vídeos disponíveis na internet e que Cármem decidiu manter no ar.
“Se alguém conhecer alguém do agronegócio nesse país, desses que tão comprando arma, desses que diz que não gosta do PT, desses que diz que não gosta dos sem-terra, perguntem pra eles: quem é que fez mais bondade para o campo e o agronegócio, se foi o PT, ou se foi esse genocida que tá aí, esse genocida não fez absolutamente nada”, disse Lula em evento no Recife no dia 21 de julho.
Nos debates de bastidores, uma ala do TSE concorda que a atuação do tribunal deve ser “minimalista”.
Para esse grupo, do qual fazem parte três dos quatro ministros que cuidam de propaganda (Cármen, Paulo de Tarso Sanseverino e Maria Claudia Bucchianeri), o tribunal não pode se intrometer nas picuinhas da disputa eleitoral e deve evitar o papel de moderador onipresente do debate político.
“Se proibir Bolsonaro genocida, vão proibir Lula ladrão também?”, indagou um ministro, em referência à troca de farpas entre os dois principais candidatos ao Palácio do Planalto.
No mês passado, Raul Araújo determinou a remoção de vídeos em que Lula fazia a mesma coisa: chamava Bolsonaro de “genocida”.
Conforme informou a coluna, a liminar de Araújo atropelou uma articulação nos bastidores, que contou inclusive com a participação do presidente do TSE, Alexandre de Moraes, que estava sendo feita para permitir o “Bolsonaro genocida” – ou seja, nos termos da decisão que foi dada por Cármen Lúcia.
As decisões conflitantes ocorreram porque os pedidos do PL, partido de Bolsonaro, contra os vídeos de Lula foram pulverizados entre três ministros que cuidam de questões de propaganda – Cármen, Raul Araújo e Maria Claudia.
“Isso aí (a decisão de Cármen) é bom porque quando a gente chamar o Lula de ladrão e corrupto também não vão remover o vídeo”, disse à equipe da coluna o pastor bolsonarista Silas Malafaia. “Vamos falar agora direto que Lula é ladrão e corrupto.”
A enxurrada de representações pedindo a remoção de diversos vídeos dos candidatos ao Planalto está fazendo com que, na prática, o TSE crie uma espécie de glossário, definindo o que pode e o que não pode ser dito por candidatos e seus adversários.
O ministro Raul Araújo, o mesmo que proibiu o “Bolsonaro genocida”, negou pedidos do presidente da República para remover vídeos em que Lula o chama de “mentiroso” e “covarde”.
Uma resolução editada por Moraes determinou que as decisões de propaganda sejam enviadas para o plenário, para que os sete ministros da Corte Eleitoral deem uma decisão definitiva sobre os casos. É uma forma de uniformizar o entendimento do tribunal e evitar divergências internas, como no caso de “Bolsonaro genocida”.
As discordâncias, no entanto, persistem. Foi o que ocorreu na última quinta-feira (1), quando o plenário do TSE derrubou uma decisão de Maria Claudia envolvendo tuítes de Bolsonaro que associavam Lula à facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC).
O PT acusou Bolsonaro de propaganda eleitoral antecipada e desinformação por conta de publicações no perfil do presidente no Twitter, em julho. Nelas, Bolsonaro relaciona o PT e Lula com a organização criminosa PCC.
Para a ministra, os tuítes não deveriam ser removidos, já que o presidente os escreveu tendo como base uma reportagem jornalística. Bolsonaro compartilhou o vídeo de uma reportagem em que um líder do PCC grampeado pela PF, afirma que a facção tinha um “diálogo cabuloso” com o PT.
“Líder da facção criminosa (irraaa) reclama de Jair Bolsonaro e revela que com o Partido dos (irruuu) o diálogo com o crime organizado era cabuloso”, escreveu Bolsonaro, ao publicar trecho da reportagem.
A postura do presidente foi duramente reprovada pelos ministros do TSE. “Mesmo (se for) em uma eventual notícia que saia, o desvirtuamento dessa notícia e a utilização eleitoral para uma propaganda negativa, para uma agressão, devem ser combatidos pela Justiça Eleitoral”, afirmou Moraes.
“A questão não é só a inverdade, a mentira, mas o desvirtuamento da finalidade da divulgação. Foi uma notícia que saiu na mídia tradicional, que também pode cometer fake news.”
Por 6 votos a 1, os ministros da Corte entenderam que o conteúdo feria os limites da liberdade de expressão e configurava atentado à honra contra o candidato. Os ministros fixaram uma multa de R$ 5 mil e determinaram a remoção imediata dos tuítes, o que irritou aliados de Bolsonaro.
“É de se indagar, ainda: candidatos em pleitos eleitorais não podem mais divulgar matérias jornalísticas?”, indagou o advogado Tarcísio Vieira de Carvalho, ao entrar com recurso contra a decisão do plenário do TSE.
“A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não deixa dúvidas a esse propósito, plasmando a impossibilidade de se tolher o debate, notadamente em um cenário em que o direito à informação se revela de majorada importância.”
Conforme informou O GLOBO, o TSE já decidiu remover ao menos 17 conteúdos irregulares nesta campanha — uma média de um a cada três dias.
Para a advogada Clarissa Maia, integrante da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), o adjetivo “genocida” atribuído a Bolsonaro é uma crítica à sua política de gestão no enfrentamento da pandemia.
“Os debates políticos não são necessariamente cândidos. O tratamento jurídico quanto a honra dos agentes públicos possui algumas peculiaridades que os diferenciam em relação às pessoas em geral”, afirma.
“Homens e mulheres públicos, pela própria natureza das suas atividades, estão mais expostos e suscetíveis a avaliações e críticas da sociedade sobre as suas ações, perfis e comportamentos.”
Ao definir o que pode e o que não pode ser dito – e escrito –, o TSE pode acabar assumindo o indesejável e perigoso papel de censor do debate político.