Sem foco, auxílio Brasil atende só uma pessoa
Foto: KEVIN DAVID/ESTADÃO CONTEÚDO
Em 9 de agosto, o governo federal começou a pagar o Auxílio Brasil com o reajuste de R$ 200 no piso e acréscimo de 2 milhões de famílias. Entre essas novas beneficiárias, um dado sobressai: 1,1 milhão dessas famílias são formadas por apenas uma pessoa, o que equivale a 54% do total.
Em menos de um ano de programa, o número de famílias com apenas um integrante mais do que dobrou no cadastro do governo, saltando de 2,2 milhões em outubro de 2021 para 4,9 milhões no mês passado.
O programa ainda deve incluir mais 804 mil famílias agora em setembro, às vésperas da eleição.
O percentual das chamadas famílias unipessoais chama atenção porque destoa do dado histórico do programa, que era o mesmo da média de domicílios no país com apenas uma pessoa segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), ou seja, 15%.
Segundo especialistas ouvidos pela coluna, o aumento de famílias unipessoais cadastradas tem a ver com a mudança no desenho do benefício social, que passou a não ter como referência o número de integrantes da família ao instituir um piso que atende a quase todas as composições.
Hoje, uma pessoa que mora sozinha recebe o mesmo valor de uma família com seis pessoas (R$ 600). No Bolsa Família, quanto mais integrantes em uma família, maior era o valor. Essas distorções no critério foram tema de outra coluna em julho.
Além disso, os especialistas afirmam que a nova concepção do programa teve uma visão eleitoral ao buscar beneficiar um número máximo de pessoas adultas, sem dar reajuste às famílias com mais crianças, por exemplo.
Silvania Oliveira da Silva, 42, mora no conjunto Jorge Quintella, no bairro do Benedito Bentes, periferia de Maceió, e é a única que recebe o Auxílio Brasil em casa.
A filha dela, Mikaele da Silva, 22, vive com ela e se inscreveu na sexta-feira no Cadastro Único para tentar também receber o benefício. Elas moram na mesma casa com as duas filhas de Mikaele, de 1 e 5 anos.
“Minha filha saiu do meu cadastro quando tinha 18 anos e fez agora a inscrição para ver se a gente consegue ganhar mais. O auxílio aumentou, mas temos duas crianças aqui em casa e, quando a gente recebe esses R$ 600, não dá para nada”, diz Silvania. A família não tem outra renda e se mantém com o benefício federal e doações de alimentos da ONG Amigos da Periferia.
Jamilton Fernandes Santos é coordenador estadual do Cadastro Único e do Auxílio Brasil na Bahia. Desde outubro, quando o novo programa começou a ser pago, ele afirma que os municípios passaram a receber uma “demanda gigante” de pessoas solitárias que não estavam no Cadastro Único ou que pediram desmembramento para receberem o benefício.
“Há uma procura exorbitante de pessoas por novos cadastros. Não há um só dia que a gente não tenha mais de 15, 20 municípios reclamando nos grupos dessa situação”, afirma.
A preocupação dos gestores é de muitas pessoas estarem no mesmo núcleo familiar, mas pedirem o desmembramento por falta de informação sobre as regras do Auxílio Brasil.
“Existem aquelas famílias que dividem o mesmo teto, pagam aluguel e as contas de energia e água, mas não compartilham outras despesas como higiene, limpeza e alimentação. Aí são duas famílias. Mas, na maioria dos casos, não é assim”, explica.
Segundo determina o Cadastro Único, a família é classificada como “unidade nuclear composta por uma ou mais pessoas que contribuam para o rendimento ou tenham suas despesas atendidas por ela, todas moradoras do mesmo domicílio”.
O desmembramento de uma família em dois ou mais cadastros “constitui fraude e afeta outros usuários”. A prática pode levar à perda dos benefícios do governo. “O cadastro deve refletir as condições da família no momento da entrevista.”
Jamilton diz que falta entendimento das pessoas sobre as regras do programa, já que não houve qualquer campanha de esclarecimento por parte do governo federal.
Há uma confusão na compreensão do que é o Auxílio Brasil, e muitas pessoas estão considerando como um novo Auxílio Emergencial [que era individualizado, não por família]. Elas não veem como o programa que substituiu o Bolsa Família.”Jamilton Fernandes Santos, coordenador estadual do CadÚnico
A socióloga Letícia Bartholo, que é especialista em gestão e políticas públicas e foi secretária nacional adjunta de Renda de Cidadania entre 2012 e 2016, afirma que esse equívoco vem de mudanças rotineiras feitas pelo governo no caso da implantação dos auxílios.
“Essa busca vem da vivência do Auxílio Emergencial. Foram idas e vindas: três desenhos de Auxílio Emergencial, depois três do Auxílio Brasil. A experiência ficou marcada pelo auxílio individualizado, porque era esse o procedimento”, diz.
Para ela, o formato do Auxílio Brasil, diferentemente do Bolsa Família, não leva em conta a quantidade de moradores em um domicílio para determinar o valor a ser pago. “Na verdade, ele privilegia quem mora sozinho. Quem recebe o maior valor por pessoa é quem mora só. Por isso o aumento nessa busca”, relata.
De acordo com ela, isso justifica a queda no número médio de integrantes por moradia nos últimos meses.
Historicamente, o Bolsa Família tinha média de três pessoas por domicílio, e isso começou a cair a partir do anúncio do Auxílio Brasil. “Hoje, essa média está em 2,65 moradores. Nesse período, não houve nenhuma mudança no padrão de domicílios unipessoais no país”, afirma.
Hoje, no Auxílio Brasil, as famílias unipessoais representam 24%, quando a média nacional é 15%. Isso deixa claro que está havendo um desvirtuamento do programa, que vai custar caro e dar trabalho para ser resolvido.”Letícia Bartholo, socióloga
Para o economista e professor da Ufal (Universidade Federal de Alagoas) Cícero Péricles, a decisão de ampliar o número de pessoas beneficiárias sem controle ocorreu porque ela foi mais política do que social.
“Atender a demanda por Auxílio Brasil de maneira flexível no último ano de mandato governamental, em pleno período eleitoral, reflete a expectativa de se obter ganhos na opinião pública e, por tabela, apoio eleitoral dos segmentos beneficiados pela ampliação do programa”, diz.
Isso fica claro, ressalta, nos critérios de seleção do público, que são “menos rígidos, prevalecendo o aspecto quantitativo sobre aqueles que, antes, privilegiavam a população mais vulnerável”.
A ampliação no número famílias atendidas teve um crescimento de pessoas isoladas completamente desproporcional ao aumento geral dos tipos de família, revelando a desatualização do Cadastro Único e a flexibilização no processo de inclusão em sintonia com o objetivo político.”Cícero Péricles, da Ufal
Como o UOL também já revelou, para lançar o Auxílio Brasil, o Ministério da Cidadania usou a base de dados do Censo de 2010.
Péricles ainda lembra que, quando o Auxílio Emergencial alcançou 68 milhões de pessoas, o governo de Jair Bolsonaro (PL) teve seu maior percentual de avaliação favorável, ainda em 2020.
“A ideia de reproduzir esse fenômeno ficou também clara na decisão, tomada no ano passado, de mudar o nome do programa Bolsa Família para Auxílio Brasil”, diz.
A coluna procurou o Ministério da Cidadania para que comentasse sobre os critérios para inclusão no programa e se haverá algum tipo de fiscalização para evitar fraudes, mas não obteve retorno.
Para 2023, o governo federal enviou proposta de orçamento com valor médio de R$ 405 do Auxílio Brasil. O governo alega no documento que vai tentar uma ampliação, sem citar a fonte. Isso contrasta com que Bolsonaro tem dito em entrevistas e no debate presidencial, no dia 28, na Band, de que o valor seria mantido no ano que vem se ele for eleito.
Nesta quinta-feira (1º), o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que a manutenção do piso em R$ 600 tem de ter “uma solução política”.