Viagem de Bolsonaro foi só campanha eleitoral
Foto: Anna Moneymaker/AFP
Jair Bolsonaro não é dos presidentes mais chegados a viagens ao exterior e, ainda por cima, está mergulhado em uma espinhosa disputa eleitoral, na qual vem se mantendo atrás de Lula nas pesquisas de intenção de voto. Era de esperar, portanto, que nem fosse aos funerais da rainha Elizabeth II em Londres ou, caso decidisse ir, faria uma visita rápida e protocolar. Pois Bolsonaro cercou a passagem na capital britânica de grande estardalhaço, emendada a um bate e volta de dois dias a Nova York, para a abertura da Assembleia Geral da ONU. Interromper a agenda de comícios para empreender seu périplo internacional tinha um propósito previamente traçado: polir a imagem de mandatário que circula ombro a ombro com os mais influentes líderes mundiais. Em outras palavras, serviria para dar um gás à campanha pela reeleição, em registros depois exibidos no horário eleitoral gratuito.
A presença nos funerais da rainha, sempre em companhia da primeira-dama Michelle, foi uma desbragada exibição do candidato Bolsonaro. Faziam parte da comitiva o coordenador de comunicação da campanha, Fabio Wajngarten; o primeiro-filho e deputado, Eduardo Bolsonaro (a sumidade do clã em assuntos internacionais); um pastor evangélico, Silas Malafaia; e um padre católico, Antônio de Araújo. Mal chegou à embaixada brasileira, no domingo 18, ele apareceu em uma sacada e, diante de cerca de 200 apoiadores, pronunciou um descabido discurso eleitoreiro: classificou o Brasil de “terra prometida” e sua gestão como “missão de Deus para salvar o país” e, apontando para as pessoas na rua, pronunciou o temido “não tem como não ganhar no primeiro turno”, sua mal velada e sempre repetida reação antecipada a um mau resultado nas urnas.
Em seguida, visitou o caixão de Elizabeth II em Westminster — ele, Michelle e o inseparável Malafaia. O pastor, inclusive, disse que embarcou na viagem “em missão espiritual” e elogiou a organização: “Se fosse no Brasil, seria uma esculhambação”. À noite, gravou um vídeo em um posto de gasolina, postado em redes sociais, comparando o preço do combustível aqui e lá, como se não houvesse abissal diferença de poder aquisitivo entre as duas populações. Entre rapapés e encontros com apoiadores, no domingo à noite, Bolsonaro e a mulher foram recebidos no Palácio de Buckingham pelo rei Charles III e pela rainha consorte Camilla, ao lado de centenas de chefes de Estado e de governo. Evidentemente, fez questão de ser fotografado na rápida troca de palavras (associado a um inconveniente tapinha no braço real e um sorriso desnecessário). Disse ter se sentido lisonjeado com o fato de o monarca mencionar a ocasião em que os dois se conheceram, em Tóquio, na ascensão do imperador Naruhito ao trono, em 2019. Em um momento tenso (o presidente não estava presente), bolsonaristas entraram em choque com um brasileiro que os criticou. A cena, em plena rua, incomodou um britânico que pediu mais respeito ao luto do país, em cena gravada.
Na avaliação da campanha bolsonarista a viagem foi “espetacular”, pela proximidade com a família real e pelas mostras de apoio de eleitores do outro lado do Atlântico. “O funeral dominou a mídia do mundo inteiro”, comemorou o coordenador Wajngarten. Encerradas as homenagens, Bolsonaro seguiu na segunda-feira 19 para Nova York — o Brasil, por tradição, abre os discursos na Assembleia da ONU. Enquanto ele desembarcava, as redes mostravam um vídeo da imagem raivosa de Bolsonaro projetada no prédio da organização, com a palavra “vergonha” em vários idiomas.
A fala do presidente, no entanto, em que pesem as distorções da verdade, foi considerada menos provocadora e mais amena que as anteriores. “Em Londres, foi o Bolsonaro raiz. Em Nova York, foi o Itamaraty raiz”, diz o ex-embaixador Sérgio Amaral. Em 2020, na era Trump, ele lamentou a “cristofobia” e desancou o “socialismo globalista”. Desta vez, vangloriou-se de haver extirpado “a corrupção sistêmica que havia no Brasil” e da produção própria de vacinas contra a pandemia — na verdade desdenhada por ele e deslanchada pelo ex-governador de São Paulo João Doria. Bolsonaro ainda elencou, sem compromisso com os fatos, benefícios distribuídos aos mais pobres e ações de combate à violência contra a mulher, recado a segmentos onde precisa de votos. Em outro ponto do discurso, pintou um róseo quadro de feitos na área ambiental e resgatou o discurso histórico de que o Brasil é parte da solução e não do problema. “Se o presidente soubesse se colocar de forma diplomática, o argumento até faria sentido”, diz Gustavo Poggio, professor de relações internacionais do Berea College, em Kentucky.
No atual governo, as relações internacionais brasileiras foram pautadas pelo alinhamento ideológico com líderes de direita — as reuniões bilaterais na ONU, não por acaso, ocorreram com os colegas da Polônia e Equador. Dias antes de a Rússia invadir a Ucrânia, em fevereiro, Bolsonaro visitou Putin e, desde então, todas as suas menções à guerra relativizam a responsabilidade de Moscou. Essa postura instala o Brasil em contraposição a boa parte da Europa e aos Estados Unidos —um dia depois de Bolsonaro, o americano Joe Biden fez na Assembleia Geral um duro discurso contra Putin. “Pela relevância que tem, o Brasil conta com fichas em vários tabuleiros e não deveria se retirar de nenhum deles”, critica o ex-embaixador Marcos Azambuja. Depois de bater ponto na ONU, o presidente em viagem oficial reuniu apoiadores para mais uma sessão-comício em uma churrascaria brasileira. Em período eleitoral, parece valer tudo.