Bolsonaro é acusado de “venezuelanizar” o Brasil

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Foto: Cristiano Mariz

Durante anos, o discurso ameaçador de que, se um partido de esquerda ou centro-esquerda vencesse as eleições, o país “se tornaria uma Venezuela” foi uma ferramenta da direita na América do Sul. Além do Brasil, o discurso já foi utilizado no mínimo em Argentina, Chile, Colômbia e Peru. Em todos, o regime autoritário de Caracas era usado como sinônimo de antidemocracia e miséria. Desde a última sexta-feira, passou a ser referência também do discurso da esquerda brasileira para denunciar possível guinada autoritária num segundo governo Bolsonaro.

Em entrevista à Globonews, o vice-presidente e senador eleito Hamilton Mourão propôs uma ampla reforma do Supremo Tribunal Federal (STF) em um eventual segundo governo de Jair Bolsonaro, com aumento do número de juízes, antecipação da aposentadoria de atuais ministros e impeachment de outros. Como já havia feito, o presidente Bolsonaro reiterou nesta segunda-feira que o tema será tratado “depois das eleições”, acrescentando que pode desistir se a corte “baixar a temperatura”.

A proposta imediatamente acende o alerta em setores temerosos de uma deriva autoritária em caso de reeleição: reformas sobre o Judiciário, com a substituição de juízes por aliados do governo, estão no manual dos autocratas contemporâneos. Na própria Venezuela, Hugo Chávez fez isso no início de seu segundo mandato, em 2003, quando aumentou o número de magistrados da Corte Suprema de 20 para 32. Caminho comparável também foi seguido em Nicarágua, Hungria e Polônia.

No meio jurídico, a prática é conhecida como “empacotamento da Corte”. Ao compor um tribunal com uma maioria de juízes amistosos, líderes autoritários não sofrem mais controle sobre o seu poder — um pilar básico da democracia. No Brasil, nos últimos anos, o STF permitiu que a condução das políticas na pandemia ficasse com os estados, investigou as chamadas “milícias digitais” e atuou em proteção de populações indígenas e LGBTQI+, entre outros.

— O STF foi uma das principais instâncias de contenção do governo naquilo que se entendia irrazoável e inconstitucional — disse ao GLOBO Wallace Corbo, professor de Direito Constitucional da FGV Rio. — A ideia da reforma soa como uma tentativa de esvaziar a independência da Corte, quando ela se revela o principal obstáculo ao governo. Também é um esvaziamento do Judiciário, e da democracia como regime que respeita as minorias políticas.

A proposta representa uma reversão do discurso de risco de “venezuelização”. Sempre que pode, Bolsonaro compara uma possível volta do PT com o regime de Caracas. “Pesquisa como estavam a Argentina e a Venezuela algumas décadas atrás e como estão hoje, depois de uma sequência de governos de esquerda. É uma tragédia anunciada que podemos evitar”, afirmou o presidente em uma rede social na semana passada, ignorando que a crise argentina envolve governos de esquerda e de direita e que o regime venezuelano, liderado por militares, tem características muito próprias, como ser comandado por militares, que o diferenciam de um partido convencional de centro-esquerda.

A ameaça se repete em toda a região. Na Argentina, em suas duas campanhas à Presidência (2015 e 2019), Mauricio Macri disse que o país viraria “uma nova Venezuela” se o peronismo vencesse (quando o próprio Macri deixou o governo da Argentina, a pobreza alcançava 41% da população, o que explica sua derrota eleitoral; a crise prossegue e aprofundou-se desde então).

No caso do Chile, as ameaças vieram nas eleições do final do ano passado, por José Antonio Kast, um admirador de Bolsonaro, contra o atual presidente, Gabriel Boric. O jovem líder chileno, em resposta, diversas vezes criticou abertamente o regime venezuelano, dizendo-se defensor incansável dos direitos humanos, o que atenuou as críticas.

Na Colômbia, o presidente Gustavo Petro, um ex-guerrilheiro que assumiu em agosto, sofreu a mesma acusação durante a campanha. Ao lado do fantasma de “venezuelização”, havia o de “castro-chavismo”, em um país que nunca fora governado pela esquerda.

— Petro era o candidato mais à esquerda na História da Colômbia. Foi representado como um misto de comunista, subversivo e chavista, mesmo já tendo ido para a centro-esquerda há muito tempo — afirmou Carlos Meléndez, cientista político da Universidade Diego Portales, em Santiago.

Depois da eleição de Petro, não houve desvalorização do peso nem fuga de capitais. A Colômbia encontra-se estável, e não há nenhum sinal de deriva autoritária. No Peru, as acusações foram ainda mais sérias: apoiadores da candidata Keiko Fujimori, filha do ex-ditador, buscavam vincular o atual presidente, Pedro Castillo, ao grupo guerrilheiro Sendero Luminoso.

Meléndez observa que, em todos esses casos, o princípio da acusação de “venezuelização” é ativar afetos negativos:

— Ativa-se sempre o sentimento contra; o antipetismo, o anticomunismo. Este tipo de mobilização circula com muita facilidade via internet.

Professor de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade da República do Uruguai, Camilo López Burian observa que a direita radical busca “construir a política como confronto, no qual o outro é um adversário que ameaça destruir a unidade nacional”.

— Caso se olhe para a situação brasileira, quem mais se aproxima do regime venezuelano é Bolsonaro, por sua militarização, por atacar os meios de comunicação, por ter uma concepção autoritária e homogeneizante da sociedade e por dar pouco espaço ao contraditório.

A cientista política Renata Albuquerque Ribeiro, do instituto Plataforma Cipó, observa que, no caso, o medo ativado “é um medo da miséria, como se fosse uma exclusividade de ditaduras de esquerda”.

— A estratégia do bolsonarismo de olhar para Venezuela como ameaça e como uma catástrofe não deixa de ser uma tentativa para fazer com que as pessoas não olhem pra situação aqui dentro do Brasil, principalmente para os dados sobre aumento da fome e da pobreza — afirmou Albuquerque Ribeiro.

Ontem, Mourão fez um meio recuo e disse ser “contra o aumento do número de ministros”, mas a favor de mandatos no STF. Já o líder do governo Bolsonaro na Câmara, Ricardo Barros (PP), afirmou que entende a reforma como “necessidade de enquadramento de um ativismo do Judiciário”. A proposta gera o temor de constitucionalistas:

— Na América Latina, durante muitos anos, a Venezuela virou um espantalho para a extrema-direita. Mas não foi só lá que houve um empacotamento do Supremo, regimes de direita também fizeram isso. A reforma do STF proposta está muito próxima do que fez a Venezuela, e pode significar o esvaziamento do Judiciário — afirmou Wallace Corbo. (Colaborou Leonardo Nogueira).

Cinco países onde endurecimento do regime passou por avanços sobre a corte
Venezuela

A primeira reforma foi em 1999, quando Hugo Chávez instituiu que o Tribunal Supremo seria constituído por 20 juízes, com dez da oposição e dez aliados. Em 2004, após uma tentativa de golpe, nova reforma: 12 novos ministros foram incorporados à Corte, totalizando 32 representantes. Hoje, não há mais independência do Judiciário.

Nicarágua

A captura do Judiciário se deu aos poucos, incluindo um acordo em 1998 entre o hoje ditador Daniel Ortega e seu opositor e então presidente Arnoldo Alemán. Em 2003 houve um momento crucial, quando Ortega se aproveitou de uma acusação de corrupção do adversário e expandiu seu poder. Hoje, as decisões são tomadas politicamente.

Hungria

No poder desde 2010, o premier húngaro Viktor Orbán começou a desmantelar o Judiciário do país em 2012. Em 2014, o desmanche aumentou, e o chefe do Executivo criou um novo sistema de cortes administrativas com ampla interferência. Em seguida, o Ministério Público passou para o domínio de Orbán.

Polônia

Quando assumiu o poder em 2015, o partido ultraconservador Lei e Justiça manifestou planos para reformar o Judiciário. A maioria das reformas veio em 2018, com ações incluindo redução da idade de aposentadoria. O Tribunal de Justiça da União Europeia julgou a ação ilegal, mas o Supremo, aparelhado, desconheceu a decisão.

Turquia

Usado como instrumento político há décadas, sob o comando de Tayyip Erdogan, o sistema foi esvaziado em um grau sem precedentes. Milhares de juízes e promotores foram demitidos e substituídos por recém-chegados. O chefe de Estado se vale do poder para vigiar e prender quem fale mal dele ou vá contra seus ideais.

O Globo