Motoristas de Uber tentam dopar passageiras
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Há duas semanas, Fernanda* repetiu o mesmo ritual de todas as manhãs e pediu um Uber para levá-la de casa até a academia. Era uma segunda-feira de chuva em São Paulo, e o trajeto era curto, cerca de 2 km. Ela já tinha ouvido falar do tal “golpe do cheiro”, mas não pensou nisso, achou que nessa situação nada poderia acontecer. Porém, quando estava mais ou menos próxima do destino, entendeu que algo estava fora do normal na viagem.
“Comecei a sentir um cheiro forte, de arder o rosto, sabe? Então, senti meu corpo formigar, ficar dormente. Quando olhei para a janela do motorista, ela estava aberta, e a minha, fechada. Me liguei no que estava acontecendo. Como ela era elétrica, pedi a ele que abrisse a minha. Coloquei o rosto para fora, meu corpo totalmente dormente. Entrei em pânico, tentei abrir a porta e comecei a gritar: ‘Me tira daqui, me deixa descer, estou passando mal'”, contou, em entrevista a Universa.
De acordo com ela, o condutor não se mostrou surpreso e não ofereceu assistência, simplesmente parou o carro. Quando desceu do veículo, Fernanda caiu no chão. “Nessa hora, comecei a ter vários espasmos no meu corpo, na perna, no braço, na mão. Não estava tremendo de nervoso, eu estava com espasmos e não tinha nenhuma força para levantar.” Conseguiu pedir ajuda a uma pessoa na rua para anotar a placa do carro. Fez o protocolo sugerido pela Uber: reportou o caso no aplicativo. Além disso, por orientação de um advogado, registrou um boletim de ocorrência online. Mais tarde, percebeu que o motorista estava cadastrado havia um dia no app.
Segundo Fernanda, a Uber foi rápida e, assim que chegou em casa, entrou em contato com ela para se dizer ciente do ocorrido, que sentia muito e garantir que ela não pegaria mais corrida com aquele motorista. “Eu falei: ‘Pelo amor de Deus, o cara precisa sair da base de motoristas, vocês já sabem que isso está acontecendo, foi horrível! Se eu não tivesse me tocado a tempo, poderia estar desmaiada e vai saber o que pode ter acontecido lá'”, argumentou. Não adiantou: o atendente disse que não poder fazer mais nada.
Na sexta-feira da mesma semana, ainda traumatizada, decidiu pedir um Uber de novo. O percurso e o horário eram os mesmos. Para seu choque, o carro e o motorista também. “O nome do cara era outro, a foto diferente. Pensei ser só uma coincidência, mas era o mesmo cara, o mesmo carro, a mesma placa! Quando entrei, tive a certeza. A gente andou 50 metros, abri a porta do carro em movimento e saí.”
A história de Fernanda não é um caso isolado. Nos últimos meses, o chamado “golpe do cheiro” (também conhecido como “golpe do gás” ou “golpe do spray”) instaurou um clima de medo entre mulheres que usam de carros de aplicativo como Uber e 99.
São dezenas de relatos nas redes sociais e denúncias de que motoristas estariam tentando intoxicar passageiras. Segundo as vítimas, o padrão é bastante parecido: vidros da parte traseira dos carros fechados e, após um tempo de corrida, um odor invade o ambiente.
“Eu estava de máscara, mas, mesmo assim, passei a sentir um cheiro bem forte, como se fosse um solvente. Logo, começou uma dormência no meu rosto, que rapidamente passou para as pernas”, relata a musicista Irina Bertolucci, que também passou pelo golpe.
De acordo com a delegada Jamila Jorge Ferrari, coordenadora das Delegacias de Defesa à Mulher do estado de São Paulo, de março a junho deste ano, foram mais de 60 boletins de ocorrência registrados no estado e todos os casos aconteceram em veículos da Uber. Segundo ela, até o momento, os inquéritos concluídos no estado de São Paulo não encontraram evidências de contaminação toxicológica nas vítimas ou nos automóveis que foram periciados.
“Isso significa que não houve o que elas estão falando? Não necessariamente. É muito difícil dizer: ‘O golpe não existe’, porque você está desacreditando aquela vítima, o que ela de fato sentiu”, diz a delegada. Ela continua: “E por que [a vítima] sentiu? Porque talvez jogaram nas redes sociais? E aí as pessoas ficaram de alguma forma em pânico e começaram a sentir algo que é muito mais psicológico do que efetivamente real. E isso não é a polícia quem vai responder. O que a polícia consegue responder é que em todos os casos em que foram instaurados inquéritos, a vítima não estava intoxicada”, finaliza.
Até o momento, nenhum exame deu positivo para “substâncias entorpecentes”. Mas as investigações deveriam tratar um assunto tão delicado e que envolve uma relação de poder, no caso entre motorista e passageira, de uma forma tão protocolar? Para Beatriz Brambilla, doutora em psicologia social, docente e supervisora da estágios do curso de psicologia da PUC-SP, o caso não está sendo tratado com a seriedade e as nuances que merece.
De acordo com ela, o modelo de investigação precisa assegurar uma dimensão que não seja apenas confirmar se a vítima foi intoxicada ou não, mas entender todo o contexto daquela viagem. “Quais foram os antecedentes do ponto de vista da violência psicológica que estava ocorrendo naquela situação em que as mulheres nararram esse ataque, essa violência no carro do aplicativo?”, questiona.
Ela continua: “Há uma relação de poder na medida que você pega um carro com um homem —pensando na questão do machismo, do sexismo e da cultura de estupro e de violência que a gente vive. Quando as mulheres entram no carro, elas já entram preocupadas com o que pode acontecer. […] O motorista tem controle da situação. Ele pode coagir a pessoa que está ali. Daí, a gente está falando de uma violência que ocorre, seja ela pelo olhar, seja por uma palavra, por algum gesto, seja pelo modo como esse motorista vai dirigir. Tudo isso vai produzindo medo, vai produzindo emoções. E isso é uma violência, não importa o que ocorra. Faz com que a gente sinta medo, faz com que a gente se sinta torturada de alguma forma.”
Segundo Silvia Cazenave, toxicologista, docente da PUC-Campinas, perita criminal e ex-Superintendente de Toxicologia da Anvisa, os sintomas narrados pelas vítimas seriam de intoxicações agudas, que deveriam ser acusadas nos exames toxicológicos. Apesar disso, ela concorda com Beatriz: “Acontece realmente de a pessoa perceber um cheiro distinto e ficar ansiosa, ficar com medo. Mulheres estão sujeitas a muitas investidas criminosas e isso cria tensão. Tudo isso pode afetar a percepção”.
Sobre a questão levantada pela delegada Jamila, de que poderia existir um pânico inflado pelos relatos nas redes sociais, Beatriz refuta: “É como no caso do homem que assediou mais de 70 psicólogas. Se uma não tivesse aparecido e falado sobre isso, muito provavelmente as outras não teriam se expressado”.
De acordo com ela, essas situações precisam ser legitimadas, do contrário, são ocultadas do cotidiano, e as pessoas vão sofrendo sozinhas.
Todos os pontos colocados pelas especialistas são ancorados por dados, já que as mulheres brasileiras são percebidas como o grupo mais vulnerável à violência durante o percurso de ida ou volta para casa.
81% delas já sofreram algum tipo de violência em seus deslocamentos pela cidade, segundo o relatório da pesquisa “Percepções sobre segurança das mulheres nos deslocamentos pela cidade”, divulgado no ano passado pelos institutos Locomotiva e Patrícia Galvão.
Além disso, o Brasil registra um estupro a cada dez minutos e um feminicídio a cada sete horas, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, relativos à violência letal e sexual de meninas e mulheres no Brasil.
“A discussão sobre mobilidade urbana e gênero é uma questão muito séria e, não por acaso, a gente tem uma lei de importunação sexual para falar sobre transporte público. O fato é que a violência contra as mulheres em transportes públicos acontece”, diz Beatriz.
Para ela, empresas como a Uber precisam ser responsabilizadas e criar políticas específicas para as mulheres que assegurem a segurança delas de uma forma geral e não somente nesse caso do golpe.
“Se as mulheres fossem doidas, você concorda que a gente não teria uma política de importunação sexual em transporte público? Que não teríamos em vários lugares do mundo vagões de trem e metrô especiais para as mulheres? Que a gente não teria a política de que o ônibus para em qualquer lugar para as mulheres poderem descer? Hoje, o transporte por aplicativo é tão utilizado quando o transporte público, principalmente nas grandes cidades”, justifica.
Monica de Melo, Defensora Pública do Estado de São Paulo, também acredita que é preciso cobrar as empresas de aplicativo – e não somente a polícia – e que elas são coniventes com o que está acontecendo: “A empresa tem todo o discurso de que o motorista não é empregado, mas dizer que a empresa tem zero responsabilidade? A empresa fez uma plataforma? Você só encontrou aquele motorista através dessa empresa, você não encontrou esse motorista ali na rua, do nada? E justamente por você não ter encontrado na rua, no nada, você pegou em uma empresa justamente porque você acha que pegando o motorista de uma empresa você estaria mais segura”.
Alice*, que também foi vítima do golpe, concorda: Eu não estou com raiva [do que aconteceu]. Eu estou com raiva da gente, mulher, ter que pensar nisso [nossa segurança] o tempo todo. Geralmente quando estou na rua com meu celular, estou insegura. Quando chega o meu Uber e eu entro, é quando eu falo, nossa, eu estou em casa, estou segura. E não, é um serviço que deveria oferecer segurança para você, mas tem oferecido mais medo do que segurança”.
Do lado da Uber, a empresa se diz preocupada e recentemente até criou uma mesa de discussão só para debater o assunto no 16º Encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O painel “Golpe do gás na Uber: o aumento da sensação de insegurança a partir da desinformação”, tinha o intuito de tentar tranquilizar a sociedade e reforçar que nada está acontecendo e nada foi provado.
Procurada por Universa, a empresa 99 ainda não retornou o contato. O espaço segue aberto.