Pastores bolsonaristas enganam fiéis no Nordeste
Foto: Ricardo Moraes – 15.set.22/Reuters
O pastor Marcelo Ramos começa sua fala contando uma historinha. Certo dia, um ladrão invadiu sua residência e levou tudo. Ele fez o que pôde para assegurar que o larápio não entrasse de novo. “Nossa casa hoje se chama Brasil, e não vamos deixar o ladrão voltar para ela”, diz.
Continua o líder da Igreja de Cristo Comunidade em Piedade: escolheram soltar o bandido Barrabás em vez de Jesus, como narra a Bíblia. Não é hora de repetir o erro. “Entre Barrabás e Jair, nós escolhemos Jair.”
Ao lado do presidente Jair Bolsonaro (PL), em evento com líderes evangélicos organizado no Recife pelo pastor Silas Malafaia, Ramos convoca seus irmãos de fé para formar um exército cristão no segundo turno. “Não sobrou mais ninguém, só tem a igreja para enfrentar essa guerra.”
Expõe, então, uma das estratégias na mesa para garantir um resultado menos desvantajoso no Nordeste, onde Luiz Inácio Lula da Silva (PT) teve 67% dos votos contra 27% de Bolsonaro no primeiro turno, muito acima dos cinco pontos percentuais que os separaram nacionalmente.
É essencial colocar gente de confiança para fiscalizar os locais de votação em todo o Pernambuco, afirma Ramos. “Precisamos de você, iremos monitorar as seções e zonas eleitorais. Todas.” É a deixa para apresentar o Fiscais do Mito.
O site do projeto explica o plano para “registrar você como participante da equipe que ajudará na REELEIÇÃO de BOLSONARO PRESIDENTE”. Os dados do voluntário serão enviados para “o pessoal da coordenação da campanha”, de acordo com o texto. “Esperamos você de braços abertos e com muita vibração.”
A missionária Michele Collins, vereadora no Recife pelo PP, vibra com a iniciativa que, segundo ela, vai coibir infrações que teriam favorecido Lula na largada. “Tem muita gente se voluntariando nas igrejas, pois houve, sim, algumas pessoas que se sentiram até coagidas na hora da votação”, afirma ao jornal.
Michele e seu marido, o pastor e deputado estadual Cleiton Collins (PP-PE), ambos da Assembleia de Deus Madureira, são duas forças evangélicas no estado. E pretendem usar essa rede religiosa para promover a candidatura de Bolsonaro na região mais católica do Brasil, mas que também vê aumentar o número de templos pentecostais em seus municípios.
Para exemplificar supostas fraudes, Michele diz que achou na internet relatos de eleitores que foram votar, mas alguém já o tinha feito usando o nome deles. Cita o caso de um conhecido que perdeu o pai na véspera do primeiro turno. “No domingo, alguém votou no lugar do pai dele.” Michele fica de passar para a reportagem o contato desse filho, para que ele comprove o relato. Não responde mais.
O pastor Pedro Rodrigues dos Santos, da Igreja Apostólica Batista Viva, é da direção nacional do Fenasp (Fórum Evangélico Nacional de Ação Social e Política), que milita por causas cristãs. Ramos, quem evocou o Fiscais do Mito na frente do presidente, é o diretor da ala pernambucana da entidade.
Santos conta que essa ideia surgiu no Fenasp na segunda-feira seguinte à eleição. A meta é credenciar quantos fiscais for possível nos tribunais regionais eleitorais, via partidos políticos, para atuar no dia 30.
“Precisamos fazer isso, ao menos para intimidar os que querem fazer malfeitos. A tropa da esquerda, não tem por que ficar relativizando, ela vai para agir ilegal. A esquerda aproveitou bem o vacilo da direita, só tinha quase eles fiscalizando soberanos [na primeira rodada eleitoral].”
Como a missionária Michele, ele também fala em falcatruas que a oposição teria cometido para beneficiar os seus. Diz que soube do caso de um fiscal reconhecido pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) orientando um eleitor analfabeto dentro da cabine, o que é proibido. A Folha pergunta se há qualquer evidência dessa e de outras alegações. “Não tenho o vídeo, não tô preocupado em provar nada, tô te dando a razão do que vimos na internet, as pessoas nos falaram isso.”
São discursos que ecoam o do próprio presidente, que já em 2018 se disse vítima de fraude nas urnas —teria na verdade vencido no primeiro turno. Nunca provou essa tese.
Vídeos pró-Bolsonaro e anti-Lula movimentam grupos de Telegram ou WhatsApp como o Unidade, que reúne alguns dos principais líderes evangélicos da região.
Muitos deles estiveram num hotel recifense à beira-mar para ouvir Jair Messias Bolsonaro discursar na quinta (13) que “quem salva é Jesus Cristo, eu não salvo nada, apesar do meu nome ser Messias por acaso”.
O presidente também sugeriu naquela tarde uma aliança religiosa. “Repito, sou católico, mas sou cristão, e evangélicos em grande parte estiveram ao meu lado.”
Antes, o pastor Estevam Fernandes, da Primeira Igreja Batista de João Pessoa, clamou por “um país livre e lindo para Jesus”. Dom Paulo Garcia, arcebispo da anglicana Igreja Episcopal do Brasil, profetizou que vai “tomar uma tubaína e comer pastel” com o presidente reeleito. “Nunca na história deste país o povo de Deus orou tanto por nossa pátria e em especial pelo senhor.”
Aplausos irromperam quando o pernambucano Gilson Machado, ex-ministro do Turismo de Bolsonaro, disse preferir “10 mil vezes um presidente que ore o Pai Nosso do que um que roube o pão nosso”.
O carioca Malafaia evocou suas raízes —é filho de baiano— antes de chamar o PT de “assassino de nordestinos”.
À Folha ele diz que, se quiser avançar entre crentes do Nordeste, a direita não deve trafegar só na pauta de costumes. Uma das mensagens possíveis: Lula promete picanha para as massas, mas nem acesso à água todo mundo tem na região, com prevalência de governadores de esquerda. “Cadê o pai dos pobres que não dá água pro povo, vai dar carne onde?”
Um saldo de encontros como aquele, segundo Malafaia, são os vídeos que os pastores gravam com o presidente. A palavra bolsonarista assim irradia do topo para a base, por meio das redes sociais.
O pastor Santos, que coordena o Fiscais do Mito, diz que, se bem articulada, essa frente religiosa pode causar estrago na campanha lulista.
“Em toda cidade tem igreja evangélica, certo? Nosso apelo é para nossos irmãos da fé. Vamos usar irmãos presentes em todas as cidades. Pode não ter banco do Brasil, Correios, pode não ter nem prefeitura porque é povoado, mas todo lugar tem igreja. Então temos essa facilidade de estarmos presentes no tecido social.”