PF interferiu na política do Tocantins
Foto: Douglas Lopes/Agência Pública
Uma gravação feita por um delegado da Polícia Civil de Palmas, no Tocantins, revela como um delegado da Polícia Federal (PF) sugeriu alterar a condição do depoente —de investigado para testemunha— desde que ele “colaborasse” com a investigação.
O inquérito da PF levou ao afastamento do então governador do estado, Mauro Carlesse (Agir), e alterou o cenário político do estado nas eleições de 2022. Carlesse renunciou ao cargo, não se candidatou, e seu ex-vice, hoje um desafeto, reelegeu-se governador no primeiro turno.
“A gente conversou com a PGR, o [delegado] Mauro, que coordena isso, tá mais a frente, e nossa posição era essa. Se vocês não colaborarem, a gente coloca ‘investigado’, cês têm ciência de tudo que estava se passando ali. Se vocês colaborarem a gente ouve vocês como testemunha, que para a gente é bom, para vocês também é muito bom”, diz, na gravação, o delegado da PF Duílio Mocelin Cardoso ao delegado de Polícia Civil Thiago Emanuell Vaz Resplandes no início do depoimento prestado em novembro de 2021.
“Ou seja, vocês saem da ação penal, da condição de investigado, e vêm para [a condição de] testemunha e não sofrem reflexo penal, administrativo, cível nenhum, e a gente só se pauta na questão de informações”, sugeriu Cardoso, delegado que trabalhou na equipe da Lava Jato em Curitiba em 2016 e ocupou cargo de confiança no Ministério da Justiça do governo Bolsonaro durante a gestão de Sergio Moro (2019-2020).
A Operação Éris foi desencadeada em outubro de 2021 por ordem do ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) Mauro Campbell a pedido da subprocuradora-geral da República, Lindora Araújo. Carlesse foi afastado do cargo, ao qual não mais voltou, até a renúncia, em 2022.
Resplandes, 31, que está na polícia do Tocantins há cinco anos, usou seu celular para gravar o próprio depoimento de cerca de duas horas. No termo de depoimento, após aceitar a proposta da PF, ele foi identificado como “depoente” e “foi alertado do compromisso de dizer a verdade”.
Contudo, um mês após o depoimento, Resplandes foi denunciado por Lindora por suposta “falsidade ideológica em documento público”. Em julho, inconformado por entender que a promessa da PF não foi cumprida, Resplandes explodiu. Entregou a gravação à 1ª Vara Criminal de Palmas acompanhada de um pedido de busca e apreensão de provas que ele considera indispensáveis para sua defesa.
O pedido foi subscrito por outro investigado, o ex-delegado e atual procurador de Palmas Paulo Henrique Gomes Mendes. Em 30 de agosto, o juiz Rafael Gonçalves de Paula reconheceu a procedência do pedido dos delegados ao determinar a localização e a cópia dos documentos citados pelos delegados.
Guardadas em sigilo desde então, a gravação e as afirmações de Resplandes e Mendes agitam os bastidores do Judiciário e da polícia locais. Elas colocam em xeque os métodos empregados na Operação Éris. Embora eleito pelo PSL em 2018, Carlesse hoje não é aliado de Jair Bolsonaro. Em 2022, o presidente apoiou o deputado federal Ronaldo Dimas (PL), que acabou derrotado na disputa pelo governo do estado.
Falando em tese, sem conhecer detalhes do caso, três advogados ouvidos pela Pública consideraram que o comportamento do delegado da PF durante o depoimento deveria ser investigado em um inquérito próprio. “Isso compromete o sistema de Justiça, esse tipo de excesso é o que vimos acontecer na Lava Jato e que procuramos alertar”, disse Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do Grupo Prerrogativas.
Segundo Carvalho, pode ter ocorrido “um desvio de poder”. “O delegado, ao sugerir um benefício, mesmo que não acobertado pelas regras de uma delação premiada, acabou induzindo o depoimento.”
Para Fernando Tibúrcio, advogado condecorado em 2017 com a Ordem do Rio Branco pela defesa dos direitos humanos, “a autoridade policial não pode usar como técnica de entrevista ou interrogatório a promessa de mudança do status de investigado para testemunha”. “Se o uso de métodos heterodoxos para pressionar investigados se tornar prática corriqueira, isso acabará por decretar a falência do sistema de investigação criminal, e o próprio Estado Democrático de Direito se verá ameaçado. Estivemos bem perto disso na Itália, por ocasião da Operação Mãos Limpas, e aqui no Brasil, durante a Lava Jato.”
Jonas Marzagão, advogado criminalista em São Paulo que há 25 anos atua na defesa de investigados e réus em operações da PF, disse que, em tese, o delegado que conduziu o depoimento poderia estar sujeito a uma investigação por infração ao item II do artigo 23 da Lei de Abuso de Autoridade se de fato ficar comprovado que “omitiu dados prestados pelo declarante no inquérito”.
Em entrevista em sua residência em Palmas, o ex-governador Carlesse disse que nunca foi ouvido pelo STJ antes do seu afastamento e que o Tocantins vive “um Estado policialesco”. Atribuiu sua queda ao conflito de seu governo com um grupo de delegados que, segundo ele, considerava-se acima das leis.
Procurada, a PGR respondeu que “desconhece o teor descrito” no pedido de resposta enviado pela Pública. “Tanto que apresentou denúncia contra as pessoas mencionadas. Como em outros casos, o trabalho da PGR foi feito de forma técnica, considerando os fatos e as provas reunidos no inquérito.”
Em nota, a PF afirmou que “não recebeu questionamentos sobre a conduta de qualquer policial envolvido na Operação Éris e desconhece a gravação citada”. “Qualquer questionamento envolvendo a conduta de policiais da instituição é encaminhado à Corregedoria para conhecimento e providências pertinentes”.
Segundo a PF, os delegados do órgão “são treinados durante o curso de formação profissional e em outros momentos da carreira em técnicas de entrevista e interrogatório, visando a desenvolver métodos e estratégias na condução de oitivas para um melhor esclarecimento dos fatos em apuração”.