Advogado de Lula pode ir para o STF
Foto: Ricardo Stuckert
Era a segunda viagem do ex-ministro Aloizio Mercadante (PT) a Curitiba para visitar o ex-presidente Lula, pouco depois de sua prisão, em abril de 2018. Naquela tarde de quinta-feira, Mercadante chegou ao prédio da Polícia Federal com dois volumes do mesmo livro nas mãos. O ex-presidente já havia sinalizado que usaria seu tempo atrás das grades, que acreditava que seria curto, para se dedicar à leitura. Lula, no entanto, não era o destinatário daqueles exemplares de “Longa caminhada até a liberdade”, biografia do líder sul-africano Nelson Mandela.
O “presente” era endereçado aos agentes da Polícia Federal Jorge Chastallo Filho e Paulo Rocha Júnior, conhecido como Paulão. Seriam eles as pessoas que teriam mais contato com o petista nos 580 dias em que Lula ficou preso em Curitiba. Ambos atuariam como os responsáveis pela segurança da cela do agora presidente eleito e, na prática, seriam os carcereiros do petista.
Ao entregar a obra a Chastallo, coordenador das escoltas e chefe da carceragem da PF, Mercadante disse que a biografia narrava a amizade que nasceu entre Mandela, que ficou preso por 27 anos por fazer oposição ao regime de segregação racial em seu país, o apartheid, e seu carcereiro, Christo Brand.
— A história do Brasil está passando por esta cela e vocês serão observadores privilegiados — disse o ex-ministro. Na conversa, deu um spoiler. Contou que Mandela, ao se tonar presidente após sair do cárcere, ofereceu a Brand um emprego na Assembleia Constituinte, como símbolo de conciliação e superação do apartheid.
Eleitor de Lula e simpático às ideias defendidas pelo PT, Paulão desenvolveu, já nos primeiros dias, uma relação de proximidade com o petista. Um dos fatores que o aproximou de Lula foi ser o profissional que mais passava tempo com o detento nos fins de semana, quando o petista não podia receber visitas. Naqueles dias, as conversas eram longas e incluíam todos os temas: política, família, namoro e até Domingão do Faustão, programa que Lula costumava assistir e comentar, por só ter acesso à TV aberta.
Foi no ombro de Paulão que Lula chorou no momento mais difícil que passou na prisão: a morte do neto Arthur, de 7 anos de idade, 11 meses depois de chegar em Curitiba. Vítima repentina de uma meningite, o pequeno era um dos nove netos mais chegados ao avô. Diferentemente do que aconteceu dois meses antes, em ocasião da morte de seu irmão Genival Inácio da Silva, o Vavá, 79 anos, desta vez a Justiça autorizou em tempo hábil que Lula fosse ao velório de Arthur. No retorno, o ex-presidente passou duas semanas abatido e sem vontade de conversar.
– Não entendo por que levar alguém tão jovem, uma criança — repetia o petista a todos que o visitavam. Durante os dias que se sucederam, Lula abandonou o comportamento alegre e brincalhão que manteve na maior parte do tempo que esteve preso, parou com as piadas e com os bilhetes que mandava a interlocutores e amigos.
O responsável por contar a tragédia do neto ao petista foi Chastallo. Apesar de não ter a mesma conexão com as ideias de Lula que o colega Paulão, o agente se mostrava respeitoso e curioso sobre as histórias que o ex-presidente contava. Além disso, sempre puxava papo com lideranças políticas e personalidades que visitavam Lula, como o filósofo Noam Chomsky, de quem é fã e já tinha lido dois livros, e o ator Danny Glover. Como era chefe da carceragem, cabia a Chastallo autorizar o que podia entrar na cela. O agente tinha o poder de transformar a vida de Lula em um tormento ou amenizar o sofrimento. Optou pelo segundo caminho. Chastallo foi essencial para que itens como um aparelho de TV, uma esteira ergométrica e um cooler elétrico entrassem na cela de Lula sem embaraços. Todos com autorização judicial.
— Se eu tivesse feito um curso de ciências políticas, não teria aprendido na faculdade a metade do que aprendi com Lula e as pessoas que o visitaram. Mais interessante do que conversar, era ouvir os diálogos do presidente com esses intelectuais, políticos e artistas. As conversas giravam muito em torno de questões políticas e sociais e eu aprendi ouvindo — contou à reportagem.
O espaço onde o petista ficou preso era um quarto de 25 metros quadrados onde, antes de receber Lula, policiais que estavam em missão na cidade dormiam por um ou dois dias. A área foi adaptada para recebê-lo. As duas janelas foram gradeadas, uma cama larga de solteiro foi colocada próxima a uma mesa com quatro cadeiras e um criado mudo. Havia também um banheiro privativo, com cortina de plástico, chuveiro elétrico, pia e privada.
Chastallo teve papel importante para que a cúpula da PF do Paraná liberasse a visita da então namorada e hoje esposa de Lula, a socióloga Rosângela da Silva, a Janja. Os encontros passaram a acontecer nas quintas-feiras, depois que o petista recebia seus familiares, geralmente os filhos. O relacionamento foi mantido em sigilo por um ano e quatro meses, até maio de 2019, quando Lula revelou ao ex-ministro da Fazenda Luiz Carlos Bresser Pereira, durante uma visita, que estava apaixonado e casaria assim que saísse da prisão. Logo a identidade de Janja, que trabalhava na Itaipu Binacional, veio à tona.
As trocas de cartas entre Lula e a namorada começaram nas primeiras semanas que ele chegou em Curitiba. Foram mil correspondências, 500 escritas por ela e as outras 500 por ele. Além dos manuscritos, Janja cuidava do petista como podia. Enviava refeições quando permitido, roupas, remédios, cobertores e itens de higiene pessoal. Ela contava com a ajuda dos seguranças de Lula, que se revezavam semanalmente em Curitiba.
Lula deixou sua cela de 25 metros quadrados em novembro de 2019, mas levou consigo os laços com Paulão. A pedido do próprio Lula, Paulão foi destacado para trabalhar com os policiais federais que atuaram em sua campanha. Agora, ele deve migrar para o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), responsável pela segurança presidencial. Chastallo não chegou a ser cotado para atuar na campanha, porque ocupa, até janeiro de 2024, o posto de adido da corporação na Embaixada de Lima, no Peru. Sua boa relação com Lula, no entanto, permanece. O agente, inclusive, chegou a declarar voto no petista.
Os momentos de tristeza e de alegria de Lula, assim como as articulações políticas e debates sobre a estratégia de defesa feitas pelo petista nos seus 580 dias de prisão tiveram outras duas testemunhas oculares e ativas: os advogados Luiz Carlos Rocha e Manoel Caetano. Exceto nos fins de semana e dias de encontros com familiares, a dupla visitou Lula regularmente na prisão. Rochinha, com é chamado, ia de manhã, e Manoel, à tarde. Primos e sócios há 13 anos, os paranaenses com pais nordestinos passaram a atuar na defesa de Lula a convite de Roberto Teixeira, compadre, amigo de confiança e advogado do presidente.
Rocha já havia se reunido com Lula nos tempos em que militava no Partido Comunista Brasileiro (PCB), nos anos 80, mas voltou a encontrá-lo em maio de 2017, quase um ano antes de Lula ser preso. Na ocasião, o presidente foi a Curitiba prestar seu primeiro depoimento na Lava-Jato, acompanhado pelo coordenador de sua defesa, o advogado Cristiano Zanin. Antes de ficar cara a cara com o seu algoz, o juiz Sergio Moro, Lula e Zanin se reuniram no escritório de Rocha. A notícia vazou e a pacata rua no bairro de Bacacheri foi tomada por jornalistas, fotógrafos e manifestantes pró-Lava-Jato. A banca dos advogados passou mais de um mês recebendo telefonemas com ameaças de bomba.
A amizade de Lula com Rocha e Manuel aconteceu após a prisão, nas visitas diárias. As conversas incluíam questões jurídicas sobre seus processos, já que a dupla também fazia ponte com Zanin, que tinha São Paulo como base, mas também havia espaço para debater os mais variados assuntos. Eles também atuavam no campo emocional, focados em não deixar Lula se abater. Em paralelo, tinham a missão de levar cartas, bilhetes e relatórios feitos pelo assessor pessoal de Lula, Marco Aurélio Santana Ribeiro, o Marcola, e voltar com orientações do petista.
Todas as manhãs, por volta das 8h, antes de subir para a cela de Lula, Rocha se encontrava com Marcola em um contêiner que servia café nas proximidades da PF. No bolso, o advogado carregava, muitas vezes, um envelope vermelho. Eram as cartas que Janja mandava para o namorado. O objetivo era preservar a correspondência entre Lula e a futura esposa do escrutínio dos policiais, para não expor um assunto tão pessoal.
— Na hora que a gente chegava para visitá-lo, era um bom momento, pois estávamos indo encontrá-lo. Mas todos os dias, a gente saía da PF com gosto amargo de ter que deixá-lo lá — disse Rocha à reportagem.
A cada visita, a confiança de Lula em Rocha e Manoel aumentava. Em menos de um mês, o petista solicitava a presença de um ou de outro em praticamente todas as conversas que tinha na cela. Fazia questão de sempre ter uma testemunha. A dupla presenciou reuniões tensas em que o petista defendeu a permanência de Gleisi Hoffmann na presidência do PT, em 2019.
A corrente majoritária do partido, Construindo um Novo Brasil (CNB), havia intensificado o processo de fritura da deputada e a pressão para que Fernando Haddad assumisse o posto. Lula se colocou terminantemente contra e o grupo cedeu. Os novos amigos também acompanharam de perto o dilema de Lula de abandonar sua candidatura para que Haddad pudesse substituí-lo na disputa presidencial, em 2018.
O petista postergou o máximo que pôde a decisão de desistir do pleito e só o fez quando foi obrigado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que impugnou sua candidatura com base na lei da ficha limpa. O principal receio de Lula era que a renúncia soasse como reconhecimento de culpa. Lula insistia em sua inocência.
— Abri mão do meu instrumento de defesa mais importante — disse Lula a Manoel.
Naquele momento, a convicção de boa parte dos integrantes do partido era de que a carreira política do líder petista terminava ali.
Lula saiu da prisão, mas levou os novos companheiros. Eles assistiram juntos, no sobrado onde o petista morou, em São Bernardo do Campo (SP), o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que culminou na decretação da parcialidade de Sergio Moro, em 2021. Juntos, brindaram a decisão. Também acompanharam o petista em viagens internacionais para receber homenagens. Na campanha presidencial deste ano, Manoel Caetano se tornou um dos homens de confiança de Lula, acompanhando o petista em praticamente todas as viagens. No entorno do presidente eleito, há a expectativa de que Manoel vá para o governo como assessor especial no Palácio do Planalto.
Além do fim da atuação política de Lula, havia uma grande preocupação no PT sobre quando o presidente conseguiria sair da prisão. A atuação de Cristiano Zanin como principal defensor de Lula era motivo de questionamentos e ciúmes entre advogados próximos ao partido. Eles apontavam que Zanin não era um criminalista de renome, já que sua especialidade era Direito Civil, e que fora escolhido somente por ser genro do compadre do presidente, Roberto Teixeira. Zanin é casado com Valeska, filha de Teixeira. Ela atuou com o marido na defesa de Lula.
Outro ponto de crítica entre os petistas foi a estratégia escolhida por Zanin de seguir um caminho oposto ao que pregavam os criminalistas tradicionais, que era o de submergir e não entrar em confronto direto com o ainda todo-poderoso Sergio Moro. Desde o início de sua atuação, o advogado alegava que as acusações da Lava-Jato contra seu cliente eram motivadas mais por viés político do que jurídico e destacava a falta de imparcialidade de Moro para conduzir os casos. Além disso, adotou uma postura combativa na esfera da comunicação. Para se contrapor à Lava-Jato na imprensa, criou com sua equipe páginas na internet que mostravam a versão da defesa sobre as acusações.
O início do trabalho com o petista se deu mais de dois anos antes de sua prisão. Em dezembro de 2015, Zanin acompanhou Lula em um depoimento sigiloso prestado à PF, em Brasília. Um dos momentos que mais os aproximou, no entanto, ocorreria em Curitiba. O ex-ministro do STF Sepúlveda Pertence entrou no time de advogados e passou a defender a tese encampada por boa parte do PT, de que Lula deveria entrar com um pedido para substituir a detenção por uma medida alternativa, como a prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica. Lula estava irredutível contra a iniciativa e repetia que não era pombo para usar o aparelho. Para ele, qualquer negociação soaria como confissão de culpa. O tema foi debatido com Zanin e Valeska, que concordavam.
Mesmo assim, Pertence levou ao STF um pedido para que fosse concedida ao ex-presidente a prisão domiciliar, caso a corte rejeitasse seu pedido de liberdade. Assim que souberam da peça pela imprensa, Zanin e Valeska emitiram uma nota para desmentir o colega. O episódio culminou na saída do ex-ministro da banca de Lula, apesar dos apelos para que ficasse.
Outro motivo de embate de Zanin com o PT foi o habeas corpus em que pediu que Moro fosse considerado suspeito. A peça foi levada à Justiça em 2018, após o ex-juiz aceitar o cargo de ministro da Justiça de Bolsonaro. O tema chegou a ser debatido numa reunião dentro da cela de Lula com outros advogados filiados ao PT. Eles se posicionaram contra o pedido, por avaliar que Moro estava muito forte e que aquilo só elevaria a tensão com o Supremo. O clima pesou. Zanin ameaçou deixar a defesa se o habeas corpus fosse retirado.
Lula interferiu na discussão e defendeu a manutenção do pedido. Em março de 2021, o STF considerou Moro suspeito. Hoje, com Lula rumo ao Palácio do Planalto, Zanin desponta como um dos principais cotados para ocupar a vaga de ministro da corte. Duas cadeiras ficarão vagas: uma em maio, com a aposentadoria de Ricardo Lewandowski, e outra em outubro, com a saída de Rosa Weber. Há também que defenda seu nome para a advocacia-geral da União.
Em sua primeira fala ao deixar a prisão, em 2019, ainda na vigília montada por militantes para acompanhá-lo nos seus 580 dias de prisão em Curitiba, Lula fez um agradecimento a Marcola.
— Quero cumprimentar o companheiro Marcola, que me subsidiava de material, informações, e com quem eu também poderia dar um esporro de vez em quando — disse em tom de brincadeira. As redes sociais entraram em polvorosa alegando que Lula havia agradecido o líder de uma facção criminosa. O presidente, na verdade, se referia a seu fiel e discreto assessor pessoal, o cientista político Marco Aurélio Santana Ribeiro, com quem trabalha desde 2015.
A ida de Marcola para Curitiba se deu em 7 de abril de 2018. Poucas horas antes de Lula aterrissar na cidade em um avião da PF, o assessor, que fazia mesmo trajeto numa aeronave comercial, não conseguiu engolir o choro e teve que ir ao banheiro três vezes para se recompor. Ele chegou à capital paranaense e se hospedou no flat Petras, que acabaria se convertendo no QG do PT e da equipe de Lula por boa parte do tempo de prisão do petista. Foi nesse mesmo flat que morou por nove dos 19 meses que ficou na cidade acompanhando o chefe.
Como não era advogado, Marcola não podia entrar na carceragem para visitar Lula. Por isso, seu primeiro encontro com o petista na prisão ocorreria somente sete meses após Lula ir para atrás das grades. Ao entrar no cômodo, deu de cara com o presidente varrendo a cela, porque as visitas anteriores entraram com os pés sujos de barro.
Nesse período, o assessor foi aprendendo a decidir por si próprio o que seria prioridade. Para dar os primeiros passos, ouviu o conselho de Gleisi Hoffmann:
— Faça o que você acha que Lula gostaria que fizesse — disse ela.
Por iniciativa própria, passou a ligar para pessoas que o presidente costumava ouvir e fazer anotações. Em paralelo, separava notícias de jornais e revistas que enviava diariamente para Lula, por meio de seus advogados. Mais tarde, com a autorização judicial para mandar pen-drives, passou a encaminhar filmes, cursos online e até músicas que o presidente conseguia ouvir na TV da cela. O petista também fazia diversos pedidos e orientações ao assistente: encomendava análises para ex-ministros, pedia que mandasse recados a familiares, que marcasse agendas com lideranças políticas, entre outras tarefas.
Do lado de fora da prisão, Marcola era procurado por todos que queriam notícias de Lula. Um dos primeiros bilhetes que recebeu do presidente foi curto e direto: “Diga aos amigos que estou bem”. O assistente levava tudo ao pé da letra e ligava para a lista de nomes que considerava serem amigos de Lula para passar o recado. Ao todo, foram mais de 300 bilhetes enviados a Marcola por Lula, além de outros 482 escritos pelo assessor ao chefe.
Marcola fazia parte da equipe que tinha como missão manter a presença de Lula ativa e com influência no PT e no cenário político nacional. Esse pequeno grupo era composto pela jornalista Nicole Briones, com quem Marcola se casou e teve um filho. Ela administrou as redes sociais de Lula no período da prisão até o fim de 2021. Havia ainda o fotógrafo Ricardo Stuckert, que fazia os registros da vigília e de todos os visitantes de Lula.
Hoje, com o retorno do petista ao Palácio do Planalto, o presidente eleito leva consigo aqueles que não deixaram de acreditar que esse caminho poderia ser trilhado novamente.