Bolsonaristas produzem dossiê inventando fraude eleitoral

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Foto: Wilton Junior/Estadão

O dossiê apócrifo usado por bolsonaristas para lançar suspeitas falsas sobre o resultado da eleição presidencial alega que uma das evidências de fraude seria a falta de registro de votos para Jair Bolsonaro (PL) em urnas do Vale do Javari, na Amazônia, região onde foram assassinados o indigenista Bruno Pereira e o jornalista inglês Dom Phillips em junho.

Nas sete urnas do Vale do Javari, Lula venceu o segundo turno por 1.089 a 21 – o mesmo que 98,1% a 1,9%. O petista também superou Bolsonaro no somatório de toda a Atalaia do Norte (AM), cidade onde está a terra indígena. Foram 4.660 votos contra 1.136 – 80,4% a 19,6%.

O município, localizado na fronteira com o Peru e com a Colômbia, tem uma larga faixa da população abaixo da linha da pobreza. Com uma infraestrutura de serviços precária, está em uma região conhecida pela ausência do Estado e pelo intenso fluxo de narcotraficantes.

Na área do Vale do Javari, as comunidades indígenas votam em sete locais definidos pela Justiça Eleitoral. Em quatro, Bolsonaro zerou. Todos os votos válidos dos kanamaris, mayurunas e marubos das aldeias São Luiz, São Sebastião, Remansinho e Maronal foram para Lula.

Pela primeira vez, a Justiça Eleitoral levou a urna eletrônica até a aldeia Maronal. A demanda antiga dos marubos poupou quatro horas de viagem pelo Alto Rio Curuçá até a seção mais próxima. Dos 108 indígenas aptos na localidade, só um não escolheu Lula e anulou o voto.

Líder da Maronal, Paulo Marubo é o coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), entidade para a qual o indigenista Bruno Pereira trabalhava quando foi assassinado. Em um protesto organizado pela Univaja durante as buscas pelos corpos de Bruno e Dom, Jair Bolsonaro foi duramente criticado pelos indígenas.

“Isso (o crime) não vai nos impedir de defender a nossa terra. Vamos resistir até o último índio. Esse é só o início da nossa guerra. Bolsonaro não é gente. Se fosse ser humano, teria pena das pessoas”, discursou Paulo Marubo, na ocasião. O presidente havia tratado as mortes como consequência de uma “aventura” do indigenista.

O desempenho eleitoral de Bolsonaro também foi fraco nas comunidades Lobo, habitada por outros mayurunas, e Paraíso, dos matis. Em cada um desses locais, Bolsonaro conseguiu só um voto. Na Lobo, localizada à margem do Rio Jaquirana, um policial militar local admitiu aos nativos ter sido o responsável pela divergência.

O melhor desempenho do atual presidente junto ao eleitorado indígena das reservas do Javari foi na comunidade Vida Nova, no Alto Rio Ituí, habitada por outra parte dos marubos. Foram 19 votos para Bolsonaro, contra 178 para Lula. O resultado, segundo observadores locais, se deve a uma maior influência evangélica sobre essa comunidade.

As seis urnas do Javari em que Bolsonaro conseguiu no máximo um voto entraram na documentação que baseou o dossiê apócrifo usado por um consultor argentino para disseminar mentiras sobre o sistema eleitoral do Brasil. Como mostrou o Estadão, Fernando Cerimedo é próximo a Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e esteve com o deputado brasileiro em Buenos Aires pouco antes do segundo turno.

Segundo a teoria falsa explorada por Cerimedo e pelo dossiê, os votos a Bolsonaro depositados em urnas de modelos mais antigos, como as levadas para o Javari, foram “roubados”. Os equipamentos não teriam sido submetidos a testes e, por isso, seriam manipulados para registrar mais votos em favor do petista.

A premissa é falsa, como mostrou o Estadão. Diversos serviços de checagem de informação, como o Estadão Verifica, também já demonstraram mentiras em alegações similares. Na semana passada, ficou demonstrado que é enganoso um vídeo que circula no WhatsApp sugerindo uma fraude pelo fato de todos os eleitores que compareceram a uma seção no município de Confresa, no Mato Grosso, terem votado em Lula.

Da mesma forma, a Agência Tatu, veículo especializado em jornalismo de dados do Nordeste brasileiro, apontou que 147 seções eleitorais registraram votos válidos para apenas um dos candidatos que disputou o segundo turno. Lula foi unanimidade em 143 seções, enquanto Bolsonaro foi o único votado em quatro delas.

Quando os militares apresentaram mais de 80 questionamentos ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) acerca da segurança das votações, uma das principais cobranças era a de que apenas o modelo 2020 não tinha sido submetido a um procedimento de testagem, ao contrário dos demais. Ou seja, o próprio Ministério da Defesa reconheceu que os modelos anteriores de urnas haviam sido testados. Diante da pressão dos militares, o TSE submeteu o modelo 2020 a peritos de universidades federais.

A explicação para o revés de Bolsonaro no Javari, segundo observadores da região e lideranças de Atalaia do Norte, é a insatisfação geral dos indígenas com o governo. Ademais, é comum que os nativos decidam coletivamente os seus votos. Um líder da região de Atalaia também destacou como indício da votação destacada de Lula o desempenho do programa Mais Médicos, que atuava em parceria com a Secretaria Especial de Saúde Indígena.

Por outro lado, ainda existe no Javari a comoção com o assassinato de Bruno Pereira. O indigenista, que contribuiu com a Justiça Eleitoral para levar as primeiras urnas aos povos do Javari, nos idos de 2014, foi assassinado em 5 de junho. Ele atuava ao lado dos povos indígenas para a proteção do território e foi morto por ações que conflitavam com interesses de exploradores ilegais. A morte ocasionou protestos contra o governo Bolsonaro por causa da condescendência da gestão federal com os invasores do território. Nativos de todas as etnias do Javari saíram da floresta para protestar no centro de Atalaia do Norte.

 

A Univaja fez uma série de denúncias contra o desmonte das políticas indigenistas. O desprezo, segundo a entidade, contribuiu para levar insegurança à floresta e pode ter empoderado organizações criminosas que atuam na região. Bolsonaro se orgulha de não ter demarcado nenhuma terra indígena durante seu governo.

Como mostrou o Estadão, Beto Marubo, porta-voz da Univaja, é visto por indigenistas como um bom nome para o Ministério dos Povos Originários que Lula pretende criar. A possibilidade de o futuro chefe da pasta sair da Câmara dos Deputados é vista com ressalvas por conta do risco de esvaziamento da “bancada do cocar”.

Estadão