Bolsonaro não pode mais dizer que apoiadores são “pacificos e ordeiros”
Foto: Diego Vara/Reuters
A escalada da violência nos atos antidemocráticos liderados por bolsonaristas fez desmoronar o discurso público do presidente Jair Bolsonaro (PL) e de seus aliados, que destacavam as manifestações como ordeiras e pacíficas e buscavam associar protestos violentos a grupos de esquerda.
Com casos de violência que incluem agressões, sabotagem, saques, sequestro e tentativa de homicídio, as manifestações atingiram seu ponto crítico e acenderam o alerta das autoridades, que realizaram prisões e investigam até possível crime de terrorismo.
Os responsáveis poderão ser punidos na Justiça com base na Lei Antiterrorismo, legislação que os próprios bolsonaristas tentaram endurecer visando punir manifestantes de esquerda.
Desde a sua derrota nas urnas em 30 de outubro para Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Bolsonaro fez apenas dois discursos públicos Nas duas ocasiões, ele não condenou a pauta golpista de seus aliados, mas criticou os métodos que incluíam o fechamento de rodovias.
Em 1º de novembro, quando ao menos 230 trechos de rodovias do país estavam bloqueados, ele classificou as manifestações como resultado da “indignação e sentimento de injustiça” sobre a forma como se deu o processo eleitoral.
“As movimentações pacíficas sempre serão bem-vindas, mas os nossos métodos não podem ser o da esquerda, que sempre prejudicaram a população, como invasão de propriedades, destruição de patrimônios e cerceamento do direito de ir e vir”, afirmou Bolsonaro na ocasião.
Desde então, contudo, as franjas mais radicais do bolsonarismo não só não deixaram as ruas como dobraram a aposta na violência, com destaque para os estados de Santa Catarina, Mato Grosso e Rondônia.
Em Rondônia, manifestantes destruíram uma adutora com uma escavadeira e deixaram parte da população da cidade de Ariquemes sem abastecimento de água. O governador Coronel Marcos Rocha (União Brasil) pediu apoio da Força Nacional e o Ministério Público instaurou um procedimento de investigação criminal.
Responsável pelo caso, o promotor Tiago Cadore avalia o ato como um possível crime de terrorismo. Argumenta que o caso pode ser enquadrado desta forma por sabotar o funcionamento de serviço público essencial à população.
A Lei Antiterrorismo foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pela então presidente Dilma Rousseff (PT) em 2016 na esteira das Olimpíadas do Rio de Janeiro.
Desde então, foram apresentados ao menos 36 projetos para endurecer a lei, aponta levantamento do Demodê (Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades), vinculado ao Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília.
Em sua maioria, são propostas de deputados bolsonaristas que miram ações de movimentos sociais organizados como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto). As propostas de mudança não prosperaram, mas especialistas dizem que há brechas.
“Apesar da salvaguarda aos movimentos sociais democráticos, a lei que pode cair no fator subjetivo. No limite, o que vai definir o seu uso é o posicionamento político de promotores e juízes”, explica o cientista político Thiago Trindade, professor da UnB (Universidade de Brasília).
Ele é contra a existência de uma Lei Antiterrorismo e seu uso mesmo contra movimentos antidemocráticos. O arcabouço legal do país, para Trindade, já dá conta de casos como estes sem precisar de um instrumento legal específico.
Autor de um dos projetos que visa endurecer a Lei Antiterrorismo, o senador gaúcho Lasier Martins (Podemos) nega a intenção de criminalizar movimentos sociais. O projeto de sua autoria restabelece trechos da lei vetados por Dilma.
Hoje, o senador enfatiza que o contexto político é diferente de 2020, quando o projeto foi debatido pela última vez na Comissão de Constituição e Justiça do Senado e teve relatório favorável do bolsonarista Magno Malta (PL).
O texto inclui, entre as definições de ato de terrorismo, “incendiar, depredar, saquear, destruir ou explodir meios de transporte ou qualquer bem público ou privado, com o objetivo de forçar a autoridade pública a praticar ato, abster-se de o praticar ou a tolerar que se pratique, ou ainda intimidar certas pessoas, grupos de pessoas ou a população em geral”.
Bolsonaro classificou o projeto de Lasier, à época, como “louvável”. Hoje, se aprovado, ele enquadraria com precisão cenas com as vistas em Mato Grosso nas últimas semanas.
“Sigo defendendo que a lei é meritória contra promover incêndios, quebra-quebras, baderna. Não tenho visto isso nas manifestações políticas de hoje. Salvo alguns casos pontuais em rodovias”, diz o senador.
Além da investigação de terrorismo em Rondônia, o Ministério Público Federal do Pará investiga o crime de tentativa de homicídio qualificado após um grupo de bolsonaristas que comandou bloqueios da BR-163 em Novo Progresso atacar com tiros a agentes da PRF (Polícia Rodoviária Federal).
Na avaliação da Procuradoria, o grupo é suspeito de dez crimes (incluindo tentativa de homicídio qualificado), achincalhou instituições e buscou uma “constrangedora, criminosa e delirante” intervenção militar.
Casos como esses criaram uma espécie de curto-circuito na base bolsonarista, que se divide entre os que silenciam sobre os episódios violentos e os que os condenam, e por isso passaram a ser alvo de críticas das franjas mais radicais.
Presidente nacional do PL, Valdemar da Costa Neto critica as ações violentas ao mesmo tempo em que insufla a base bolsonarista questionando no Tribunal Superior Eleitoral o resultado do segundo turno das eleições presidenciais.
Em entrevista à imprensa na última terça-feira (23), ele afirmou que os bloqueios de estradas e saques partiram de infiltrados. E sugeriu que pessoas que atuam com cargas roubadas e importação ilegal de defensivos agrícolas em Mato Grosso estão usando de violência nos atos para pressionar fazendeiros.
“Nós temos que lutar e usar a força contra isso. Ninguém pode impedir o direito de ir e vir”, disse.
Um dos principais aliados do presidente em Mato Grosso, o deputado federal José Medeiros (PL) também condena os episódios violentos em seu estado e diz que estes partiram de grupos minoritários.
“A maioria dos protestos é formada por famílias, crianças e velhinhas. Se você perguntar, ninguém ali é a favor de queimar um caminhão sequer. Mas quando acontece [um ato de violência] acaba refletindo em todo mundo”, afirma.
Ao mesmo tempo em que critica a violência, o deputado defende o silêncio que Bolsonaro adotou perante esses crimes: “Penso que o presidente deve ficar quieto mesmo. Ele não causou nada disso, quem causou foi o [ministro do STF] Alexandre de Moraes.”
Na bancada do PL de Santa Catarina, estado em que a PRF identificou métodos semelhantes aos de terroristas e black blocs nos ataques, os discursos em redes sociais estão voltados a reclamar de censura e arbitrariedades da Justiça.
Eleito deputado federal, o empresário Jorge Goetten (PL) foi o único a se manifestar prontamente contra os bloqueios. Ele publicou um vídeo sobre o assunto pouco antes do presidente fazê-lo. Nos comentários, a reação foi dividida. Diversos eleitores se disseram arrependidos do voto.
“Expliquei que não fazia sentido um dos estados que mais deu votos a Bolsonaro prejudicar a sua própria economia. Se alguns não entenderam, paciência. Falei minha opinião como cidadão”.
Goetten evita, todavia, criticar os colegas de bancada por atitudes golpistas ou por não apaziguar as ruas após o resultado das eleições.