Eleitores sem religião elegeram Lula
Foto: Montagem com fotos de Nelson Almeida/AFP e Alexandre Cassiano/Agência O Globo
Em um segundo turno marcado por discursos com apelo religioso por parte do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e do atual presidente Jair Bolsonaro (PL), a preferência de eleitores sem religião pode ter sido decisiva para o retorno do petista à Presidência. A conclusão é de um estudo do demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, que já havia analisado em 2018 a relevância do voto evangélico na vitória de Bolsonaro. De acordo com o estudo, Lula pode ter aberto uma vantagem superior a 5 milhões de votos para Bolsonaro entre os eleitores que não declararam uma religião específica, o que contribuiu para a vitória do petista na disputa mais apertada desde a redemocratização.
A estimativa do especialista para o desempenho dos candidatos por segmento religioso neste ano considera os percentuais de votos válidos da última pesquisa Datafolha antes do segundo turno, divulgada no último sábado, e também projeções elaboradas pelo próprio pesquisador sobre o crescimento da população evangélica desde o Censo de 2010. À época, o Censo apontou que os evangélicos correspondiam a 22% dos brasileiros, enquanto 8% não tinham religião.
No levantamento divulgado no sábado, o Datafolha apontou Lula com 52% dos votos válidos contra 48% para Bolsonaro, percentuais que se aproximaram do resultado eleitoral, de 50,9% a 49,1%, considerando a margem de erro de dois pontos da pesquisa. Entre os católicos, o instituto identificou que o candidato do PT tinha 59% dos votos válidos, contra 41% para Bolsonaro. Entre os evangélicos, o atual presidente aparecia com 69%, ante 31% do adversário.
No caso dos eleitores que declararam não ter religião, 70% dos votos válidos se destinavam a Lula, segundo a pesquisa Datafolha antes do segundo turno, ante 30% para Bolsonaro. Os percentuais serviram de referência para o demógrafo estimar o número absoluto de votos por segmento religioso, considerando o total de 118,2 milhões de votos válidos no segundo turno, que podem ter se destinado a cada candidato no último domingo.
Nesse grupo de eleitores sem religião, o percentual de votos válidos de Lula mensurado pelo Datafolha na véspera do segundo turno, caso aplicado ao desempenho nas urnas, representaria pouco mais de 10 milhões de votos para o candidato do PT neste segmento, ante 4,1 milhões para Bolsonaro. A vantagem de 5,85 milhões de votos aberta por Lula pode ter compensado, junto à dianteira do petista entre os católicos, a folga mantida por Bolsonaro entre eleitores evangélicos.
No artigo em que analisa as projeções e o resultado, Eustáquio, doutor em demografia pela UFMG, aponta que o crescimento evangélico no país, e a estimativa de que ultrapassem os católicos por volta de 2030, sugerem que o grupo corresponde hoje a cerca de um terço (33%) da população brasileira. Já a presença católica, que vem caindo desde a década de 1980, de acordo com as últimas edições do Censo, é estimada por Eustáquio em cerca de 50% da população.
Mesmo com a vantagem de Lula também os brasileiros com outras religiões, que totalizavam 5% da população no último Censo e são estimados hoje em 6% pelo pesquisador, Bolsonaro manteria uma dianteira de 4 milhões de votos no segundo turno graças à preferência atingida pelo presidente entre os evangélicos.
“Considerando apenas estes 3 grupos, Bolsonaro ganharia as eleições com vantagem de 3,8 milhões de votos. Mas como Lula teve superávit de 5,9 milhões de votos entre o segmento sem religião, isto compensou a vantagem de Bolsonaro nos 3 grupos anteriores e propiciou uma vantagem final de 2,1 milhões de votos no resultado final”, analisou Eustáquio.
Com presença recorrente em cultos e cerimônias evangélicas, Bolsonaro buscou consolidar na campanha o apoio de pastores das principais igrejas do segmento, que lamentaram a derrota do atual presidente no segundo turno — embora, em diversos casos, também já tenham feito acenos de olho numa relação amistosa com Lula.
Lideranças da Igreja Católica, por sua vez, manifestaram críticas durante o segundo turno a tentativas de “exploração da fé para ganhar votos”. A frase constou em nota divulgada pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) na véspera do Dia de Nossa Senhora Aparecida, cuja cerimônia teve registros de tumulto envolvendo a presença de Bolsonaro — que já havia despertado críticas ao participar dias antes do Círio de Nazaré.
Apoiadores de Lula, por sua vez, divulgaram durante o segundo turno uma carta em defesa da liberdade religiosa e pregando tratamento respeitoso a “todas as religiões e templos religiosos”. Dias depois, o petista divulgou um documento voltado especificamente ao eleitorado evangélico.