Livro explica como militares mantiveram poder
Foto: Andre Borges/AFP
Em uma passagem do livro “Poder Camuflado”, recém-lançado pela Companhia das Letras, o jornalista Fabio Victor reproduz o que ouviu de Joseíta Brilhante Ustra, viúva do torturador na ditadura implementada em 1964: “Quando encontro um general recém-promovido, digo que sou viúva do Ustra, na hora ele bate continência para mim e diz: ‘Seu marido foi um herói’.”
A cena descrita por Joseíta é um resumo, uma imagem símbolo do que o livro conta do começo ao fim: como o golpismo dos militares, implícito ou explícito, e a leniência com esse golpismo explicam a dominância de espaços de poder por integrantes da caserna após o fim da ditadura, até se atingir uma escala máxima no governo Jair Bolsonaro (PL).
A herança mal resolvida da ditadura, até a reescrita e comemoração do golpe militar no governo Bolsonaro, também explica a relação umbilical entre militares e política na democracia, objeto do livro do jornalista.
Ao longo de mais de 400 páginas, são inúmeras as histórias, episódios e relatos que demonstram a convivência e compactuação com o golpismo dos militares, em tempos de democracia.
Joseíta, por exemplo, foi convidada por Bolsonaro a trabalhar com ele, o que ela recusou. O vice-presidente, general Hamilton Mourão (Republicanos), se esforçou para recuperar e devolver à família a espada de cadete recebida por Ustra na formatura na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras).
O coronel do Exército Carlos Brilhante Ustra, morto em 2015, é herói de Bolsonaro e Mourão.
A Justiça Federal já proferiu decisões em que imputa a ele a condição de torturador na ditadura, quando foi comandante do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna) do Exército, em São Paulo, entre 1970 e 1974.
Numa outra passagem do livro, o ex-ministro da Defesa e ex-presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) Nelson Jobim duvida da tortura sofrida pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT) na ditadura.
“Muita gente depois que caiu o regime militar… Todo mundo inventou que tinha sido torturado. (…) Tu vê que a Dilma nunca contou como é que foi a tortura dela, ela te contou?”, duvidou o ex-ministro. Depois, ele disse que houve, sim, tortura. “Mas não sei bem que tipo de tortura foi…”
A conivência com o golpismo se estende a diferentes personagens que ocupam ou ocuparam espaços de poder.
Há diversas situações nesse sentido relacionadas ao general da reserva Sergio Etchegoyen, ex-ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) no governo Michel Temer (MDB), como descreve Victor.
O golpismo de Bolsonaro no 7 de Setembro de 2021, quando o presidente incitou uma multidão contra o STF e quando ameaçou não cumprir decisões judiciais, não foi nada demais para Etchegoyen, segundo o livro.
O discurso foi “raivoso”, mas o que houve foi uma “belíssima e robusta demonstração de força do presidente”, segundo o general, que culpou a imprensa pelo clima criado.
O militar chegou a compartilhar uma fake news com o autor do livro a respeito. Depois, alertado, concordou se tratar de uma notícia falsa. “Caí nisso. Que vergonha.”
Etchegoyen defende a geração de militares que deu o golpe em 1964. “Quem nos formou foi a geração que fez 1964, é isso que vocês têm de se dar conta”, disse.
O general da reserva foi à Justiça, sem êxito, para retirar o nome do pai da lista de agentes da repressão na ditadura, formulada pela Comissão Nacional da Verdade, no governo Dilma.
Etchegoyen também agiu, junto ao então vice-presidente Michel Temer, para derrubada da ideia inicial de revisão da Lei de Anistia, presente no programa de reeleição de Dilma em 2014.
O ex-ministro de Temer defendeu o tuíte intimidatório do então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, em abril de 2018.
Villas Bôas, autoridade máxima do Exército naquele momento, publicou mensagem para interferir no julgamento de habeas corpus do ex-presidente Lula (PT) no STF. O pedido de soltura foi negado, o que foi decisivo para os rumos da eleição em 2018.
O livro de Victor mapeia a enorme quantidade de militares de alta patente que soube e que participou do planejamento do tuíte. A mensagem envolveu pelo menos sete generais.
A interferência do Exército num poder constituído nunca chegou nem perto de ser investigada e punida.
Num padrão de comportamento, descrito ao longo do livro, a transgressão de regras –como a vedação de envolvimento em manifestações políticas– é ignorada por companheiros de farda. Pelo contrário, existe uma exaltação a militares como Villas Bôas.
“Poder Camuflado” descreve características comuns a militares no Brasil: o filhotismo, com a perpetuação familiar na carreira de oficial; corporativismo e privilégios; o sentimento de superioridade em relação a civis; o machismo “latente e naturalizado”; a não ascensão de negros ao topo da hierarquia militar; e a homofobia.
No governo Bolsonaro, militares ganharam altos postos comissionados da administração federal em proporção não vista antes. E mais da metade dos 5.000 militares ocupando cargos de civis no governo em 2021 era da ativa, segundo um levantamento feito para o livro.
Além dos privilégios, o governo Bolsonaro escancarou visões e gestos dos militares sobre golpes –e a disposição a reescrever ou simplesmente ignorar a História.
Nas palavras de um coronel da ativa do Exército: “Só teremos uma visão menos ‘apaixonada’ e mais centrada, seja por um lado ou pelo outro, quando todos os atores daquela época estiverem mortos.”
Fabio Victor atuou na Folha de 1997 a 2017 e na revista Piauí de 2017 a 2020.
“Poder Camuflado – Os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro” consumiu cinco anos de apuração. O livro já foi lançado em plataformas virtuais e chega às livrarias neste mês.