Lula enfrentará desafios “hercúleos”

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Foto: Ricardo Stuckert/

A sabedoria política ensina que muitas vezes é mais fácil ganhar uma eleição do que governar. No primeiro volume de suas memórias, o ex-­presidente americano Barack Obama conta que, após a vitória nas urnas, ele e sua equipe se questionaram se, diante da magnitude da catástrofe econômica, não deveriam ter preparado o país para as dificuldades que estavam no horizonte. Obama também lembra que, no dia em que foi empossado, ouviu num sermão que ele, como novo mandatário, seria lançado às “chamas da guerra” e da “ruína econômica”. O recado era claro: o desafio dele estava só começando. O Brasil não está em guerra, mas saiu da eleição de 2022 dividido, em clima de hostilidade e com focos de conflagração. O Brasil também não vive uma fase nova de ruína econômica, mas tem 33 milhões de pessoas com fome, 40 milhões de trabalhadores na informalidade e uma série de outros problemas, como um rombo gigantesco nas contas públicas. Eleito no último domingo, Lula terá, portanto, de enfrentar pelo menos doze desafios hercúleos em diferentes frentes, domésticas e externas (veja abaixo). Entre eles, o mais urgente é pacificar o país. Não será fácil.

Os sinais de dificuldade apareceram logo após a divulgação do resultado do segundo turno, no qual Lula recebeu 60 345 999 votos, novo recorde nacional, e Jair Bolsonaro, 58 206 354 votos, a menor diferença entre dois candidatos a presidente desde a redemocratização. Apoiadores de Bolsonaro, que se tornou o primeiro mandatário a fracassar na tentativa de reeleição, não aceitaram a derrota, bloquearam rodovias e, em alguns casos, passaram a defender uma intervenção militar a fim de impedir a posse de Lula, o único brasileiro a conquistar três vezes a Presidência em eleições diretas. Esses focos de insurreição ganharam corpo diante do silêncio do presidente em fim de mandato. Contrariando uma tradição democrática, Bolsonaro demorou 45 horas para se manifestar sobre o desfecho da votação e, quando o fez, entoou um discurso pouco assertivo. Sobre os bloqueios de rodovias, mostrou-se inicialmente compreensivo e solidário. “Os atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral”, declarou, encenando o eterno papel de vítima — sem provas — de fraude. Em seguida, ele emendou uma recriminação tímida, afirmando que “manifestações pacíficas são bem-vindas”, mas que os atos não podem cercear o direito de ir e vir.

Em público, Bolsonaro não reconheceu a derrota nem citou nominalmente o presidente eleito. Mesmo assim, ele determinou, como manda a lei, o início formal da transição de governo. A partir de agora, a faixa presidencial passará de forma gradativa do capitão, que tentará se manter como o principal líder da direita no Brasil (veja a matéria na pág. 42), para Lula, que escreveu um novo capítulo de redenção em sua biografia, depois de ter ficado preso 580 dias e ter sido proibido de disputar a eleição de 2018 em razão de condenação imposta no âmbito da Operação Lava-­Jato (veja a matéria na pág. 32). No discurso da vitória, como era esperado, o petista fez um apelo pela união nacional. “A partir de 1º de janeiro de 2023, vou governar para 215 milhões de brasileiros e brasileiras, e não apenas para aqueles que votaram em mim. Não existem dois Brasis. Somos um único país, um único povo, uma grande nação”, declarou. Na campanha, Lula montou uma coligação de dez partidos e se apresentou como representante de uma frente ampla em defesa da democracia, em contraposição a Bolsonaro, que personificaria um projeto de extrema direita e autoritário.

Um dos desafios do presidente eleito é reproduzir o modelo eleitoral e formar um governo plural, capaz de dialogar com setores que têm resistência ao PT. Não faltam nomes para ajudar nessa empreitada, como a senadora Simone Tebet (MDB), a ex-ministra Marina Silva (Rede Sustentabilidade) e o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB). Quatro vezes governador de São Paulo e candidato derrotado por Lula no segundo turno da corrida presidencial de 2006, Alckmin foi escalado para coordenar a transição de governo em razão de sua notória experiência administrativa. Também pesou na decisão a intenção do presidente eleito de dar credibilidade ao discurso de que o governo não será apenas do PT. Correndo contra o tempo, Lula também delegou ao petista Wellington Dias, senador eleito pelo Piauí, a negociação com o Congresso do Orçamento da União de 2023. O tema é espinhoso. Na quarta-feira passada, Dias confirmou que o salário mínimo terá reajuste acima da inflação. Outras promessas de campanha também devem ser cumpridas, como a manutenção do valor de 600 reais do Auxílio Brasil e a isenção do imposto de renda para quem ganha até 5 000 reais por mês.

O problema é que essas medidas têm custo para os cofres públicos, e até agora não se sabe como serão financiadas. Relator da proposta de Orçamento, o senador Marcelo Castro (MDB-PI), aliado de longa data de Lula, estima que faltem 100 bilhões de reais para fechar a conta de todas as despesas previstas. Este não é o único problema a ser resolvido por Lula, já que o petista também disse que acabaria com o chamado orçamento secreto, que prevê 19 bilhões de reais para deputados e senadores enviarem às suas bases eleitorais em 2023. Os parlamentares não aceitam abrir mão desses valores. Ciente disso, o presidente eleito trabalha com a possibilidade de negociar uma redução da quantia, além de uma regra determinando que parte do dinheiro seja destinada a áreas específicas, como saúde e educação. A forma como esse nó das emendas de relator será desatado pode definir as bases da relação entre Lula e o Congresso. “Está dado que as emendas de relator serão mantidas. Qualquer novidade terá de ser fruto de uma ampla negociação do Congresso com a nova equipe econômica”, disse Marcelo Castro antes de se reunir pela primeira vez com Wellington Dias.

Durante a campanha, Lula comparou o orçamento secreto a um esquema de corrupção, sem apresentar um caso específico de quem desviou dinheiro para o próprio bolso. Fez uma acusação baseada na falta de transparência e de fiscalização dos recursos, mas genérica. Em seus dois mandatos sim, conforme processos julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), houve compra de apoio parlamentar por meio do mensalão e do petrolão, os dois maiores escândalos de corrupção descobertos e punidos na história do país. O recurso ao suborno foi adotado porque o PT e seus aliados não tinham sozinhos votos para formar maioria no plenário. Em 2023, eles enfrentarão o mesmo problema. Na Câmara, por exemplo, as legendas da coligação eleitoral de Lula só elegeram 122 dos 513 deputados. Para ampliar a futura base governista, interlocutores do presidente eleito intensificaram conversas com representantes de siglas de centro, como o MDB de Simone Tebet, o PSD e o União Brasil. Petistas também dão como certo que parcela dos parlamentares do Centrão, grupo que apoiou Bolsonaro, aderirá ao governo porque não gosta de ser oposição nem sabe desempenhar esse papel.

Tudo dependerá dos termos do acerto. “Se o Lula se desvencilhar dos ortodoxos do PT, será bem-sucedido. Se segui-los, será derrotado”, diz um ex-parlamentar influente nas gestões petistas, que pediu para não ser identificado. “Se o Lula botar a cabeça no lugar, dividir o Centrão e atrair o chamado centrinho, o quadro será diferente”, acrescentou. Desde a sua fundação, o PT sempre foi acusado de ter postura hegemônica e dificuldade para dividir o poder. A conjuntura do país, que está rachado e desmantelado, forçou Lula a buscar novas alianças. A dúvida é se os novos parceiros de centro e de direita abraçados durante a campanha eleitoral conseguirão impor algumas de suas ideias, sobretudo no campo da economia. Alguns deles são favoráveis a que o presidente eleito tente aprovar uma reforma administrativa, como forma de conseguir uma folga fiscal que permita a ampliação dos programas sociais e das medidas de combate à fome. O tema sempre enfrentou a rejeição de servidores públicos e da base petista, mas esses mesmos grupos foram contrariados em 2003, quando Lula, em seu primeiro ano de mandato, aprovou uma reforma da Previdência.

Na época, havia a necessidade de dissipar as dúvidas do mercado e demonstrar compromisso com a responsabilidade fiscal, o que também ocorre agora. Os novos aliados, sobretudo economistas liberais, também defendem a manutenção do teto de gastos (veja matéria na pág. 52). “A prioridade na área econômica será a volta ao respeito ao teto de gastos, porque isso é que vai viabilizar a volta da confiança e, em consequência, um crescimento sustentável”, diz Henrique Meirelles, presidente do Banco Central no governo Lula. Além de tentar reduzir a miséria e impulsionar o PIB, que cresceu em média pouco mais de 4% em seus dois mandatos, Lula terá de lidar com outra dezena de missões complicadas. Uma delas é devolver protagonismo no cenário externo ao Brasil, que se tornou um “pária internacional” na gestão de Bolsonaro, conforme expressão cunhada pelo ex-chan­celer bolsonarista Ernesto Araújo. Outra é melhorar a imagem do país no que diz respeito ao meio ambiente.

Na atual administração, com a benevolência de Bolsonaro, houve aumento do desmatamento na Amazônia, falta de empenho para cobrar multas de infratores e esvaziamento de órgãos de fiscalização. “O Brasil está pronto para retomar o seu protagonismo na luta contra a crise climática, protegendo todos os nossos biomas. Agora, vamos lutar pelo desmatamento zero da Amazônia”, prometeu Lula no discurso da vitória. Ao seu lado, estava Marina Silva, que pediu demissão do cargo de ministra do Meio Ambiente em 2008, no segundo mandato do petista, por se sentir tratorada pela ala desenvolvimentista do governo, liderada pela então chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. Desde que venceu as eleições, Lula recebeu felicitações de diferentes chefes de Estado, como os presidentes dos Estados Unidos, Joe Biden, e da França, Emmanuel Macron. Ele também foi convidado para participar da nova rodada da conferência da ONU sobre mudanças climáticas, neste mês, no Egito. Será uma oportunidade de ouro para, num só lance, colher dividendos tanto na política externa como na questão ambiental. A corte ao presidente eleito foi resumida da seguinte forma por seu entorno: o Brasil trocou o papel de pária pelo de influencer global. Um exagero, obviamente.

Quando deixou a Presidência, em 2010, Lula costumava se gabar de ser o presidente mais popular da história do país. Dez anos depois, ele conquista o direito de retornar ao cargo apesar de ser rejeitado por pelo menos 40% da população, segundo as pesquisas. Boa parte dos apoios que recebeu durante a campanha não foi motivada por concordância com suas propostas, até porque poucas foram apresentadas ao eleitorado, mas por aversão a Bolsonaro e sua retórica autoritária. Com a saída de cena do capitão, a manutenção desses apoios dependerá do desempenho do novo governo no enfrentamento de problemas tão diversos e complexos. A volta por cima — do petista e do país — ainda depende da superação de desafios hercúleos. Perto deles, ganhar de Bolsonaro foi apenas o começo.

OS DOZE TRABALHOS

A lista de desafios que Lula terá de enfrentar

1 REDUÇÃO DA POBREZA Como em 2002, Lula considera prioridade combater a miséria e acabar com a fome, que atinge 33 milhões de brasileiros, segundo estimativa repetida por ele durante a campanha. Além da preservação do Auxílio Brasil nos moldes atuais, pretende-se estimular a geração de empregos, por meio da retomada de grandes obras de infraestrutura, e o empreendedorismo na base da pirâmide social, com a ajuda de bancos públicos

2 PACIFICAÇÃO DO PAÍS O Brasil está rachado, como ficou claro no resultado do segundo turno, decidido pela menor diferença de votos desde a redemocratização. Quando governou o país, Lula adotou a estratégia do “nós contra eles” e falou em exterminar o DEM. Alvo de retórica parecida, o petista estendeu a mão na campanha a antigos adversários, como Geraldo Alckmin e Simone Tebet, com os quais conta para estabelecer um diálogo entre o futuro governo e setores que rejeitam o PT

3 GOVERNO PLURAL Eleito por uma coligação formada por dez partidos, de esquerda e de centro, Lula disse durante a campanha que não fará um governo do PT, mas em linha com a frente democrática que representa. O histórico petista, no entanto, é um dos obstáculos para que esse modelo plural se torne realidade. Além das brigas internas, em seus governos o partido sempre ocupou os principais cargos, relegando aos aliados postos de pouca expressão

4 ORÇAMENTO SECRETO Lula prometeu acabar com o mecanismo, chamado de grande esquema de corrupção em sua propaganda eleitoral. Ele nunca explicou como resolverá a questão, mas adiantou que tentará reduzir a quantidade de verbas orçamentárias reservadas para as emendas de relator, de cerca de 19 bilhões de reais em 2023, ou pelo menos obrigar que elas sejam destinadas a áreas prioritárias, como saúde e educação

5 CRESCIMENTO ECONÔMICO Nos dois mandatos de Lula, o PIB cresceu pouco mais de 4% ao ano, a melhor média em décadas. Na ocasião, o cenário externo era favorável, o que não ocorre agora. A dúvida, ainda não esclarecida, é qual será a política econômica e o receituário para estimular a atividade econômica. Poucas pistas foram dadas. Entre elas, a retomada de grandes obras, o estímulo às micro e pequenas empresas e a promessa de uma reforma tributária

6 EQUILÍBRIO FISCAL Lula terá de conciliar o compromisso de governar com zelo pelas contas públicas às promessas de manter o valor de 600 reais do Auxílio Brasil e de isentar do imposto de renda quem ganha até 5 000 reais por mês. Uma das ideias em estudo é aprovar uma regra que permita desrespeitar o teto de gastos no caso de algumas despesas específicas, como o programa de transferência de renda. Henrique Meirelles, um dos cotados para o ministério, é defensor do teto

7 DESCONFIANÇA DOS MERCADOS Nas poucas vezes em que se manifestou sobre economia na campanha, Lula desagradou a investidores por defender a revogação do teto de gastos, a revisão da reforma trabalhista e rechaçar as privatizações. Numa tentativa de tranquilizar os mercados, garantiu que haverá responsabilidade fiscal, como em seu primeiro mandato. A resposta não é satisfatória, mas há boa vontade do outro lado do balcão. No dia seguinte à vitória, o dólar caiu, e a bolsa subiu

8 REFORMAS No seu primeiro mandato, Lula aprovou uma reforma da Previdência. Mais tarde, ele também tentou votar uma reforma tributária, mas fracassou. Uma nova ofensiva para mudar o sistema de impostos é dada como certa, mas há um projeto mais ambicioso: alguns aliados defendem uma reforma administrativa, que sempre foi rechaçada pelo PT. Com ela, dizem, será aberto espaço fiscal para bancar programas assistenciais dentro do teto de gastos

9 PODERES O país experimentou um ambiente permanente de faroeste institucional. Lula promete baixar a temperatura, apostar no diálogo e aprofundar laços com alguns representantes das cúpulas do Legislativo e do Judiciário, aos quais credita a retomada de seus direitos políticos e boa parte da resistência à pregação autoritária de Bolsonaro. A meta é consolidar pontes, inclusive com parlamentares e magistrados que lhe fizeram oposição no passado

10 IMAGEM INTERNACIONAL Lula conta com o prestígio que amealhou em seu governo para devolver protagonismo no cenário externo ao Brasil, que se tornou um pária internacional na gestão de Jair Bolsonaro, conforme definição do ex-chanceler Ernesto Araújo. Presidentes de países das Américas e da Europa já felicitaram o presidente eleito, que tem como fragilidade nessa seara a postura — que vai da benevolência ao apoio explícito — diante de ditadores amigos

11 CORRUPÇÃO Os governos do PT protagonizaram os dois maiores esquemas de corrupção da história do país, o mensalão e o petrolão. Apesar disso, Lula não apenas se recusou a fazer um mea-culpa sobre escândalos como esgrimiu a tese de que ambos só foram descobertos porque as administrações petistas eram transparentes. Controversa, essa retórica ajuda a entender por que o presidente eleito tem tanta dificuldade para discorrer sobre o assunto

12 GOVERNABILIDADE Os partidos da coligação de Lula elegeram 122 deputados federais e também não fizeram maioria no Senado. Ele, portanto, terá de negociar no Congresso a fim de aprovar projetos. As conversas com partidos de centro, como o MDB e o PSD, já estão em andamento. O desafio será firmar uma parceria dispensando mecanismos de cooptação de apoio parlamentar, sejam eles pretéritos, como o mensalão, ou atuais, como o orçamento secreto

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