Partidos disputam espaço no governo Lula
Foto: Divulgação/Assessoria Simone Tebet
Em julho, ao defender a aliança com o ex-tucano Geraldo Alckmin (PSB), o então pré-candidato à Presidência da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT) lançou mão de uma frase — na verdade, a releitura de trechos de declarações e publicações do educador Paulo Freire — que serviu de lema para toda a campanha: “Eu li em um livro do Paulo Freire que a gente tem que juntar os divergentes para derrotar os antagônicos. E é isso que vocês precisam saber”. A primeira parte da missão foi cumprida com a vitória sobre o presidente Jair Bolsonaro (PL).
Os divergentes — no caso, a miríade de forças políticas que se formou para derrotar o bolsonarismo — enfrentam, agora, mais um desafio, que é a busca por consensos no governo de transição que assegurem um mínimo de governabilidade a partir de janeiro. Essa costura está se mostrando mais complexa do que aparentava no calor da vitória nas urnas.
No Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), sede do gabinete provisório comandado pelo vice-presidente eleito, o trabalho ainda não engrenou. Muitos grupos temáticos ainda estão sem nomes indicados e a disputa por espaço já provoca atritos entre os diversos partidos que compõem a base de sustentação do futuro governo. Enquanto nas entrevistas coletivas a imagem é de união entre aliados de Lula e Alckmin, nos bastidores já há quem reclame do protagonismo de alguns e da indefinição dos rumos que o novo governo pretende seguir a partir de janeiro de 2023. Os principais atritos envolvem o núcleo ligado à base do PT, que sente a perda de espaço para forças políticas mais ao centro, personificadas pelo próprio vice, Geraldo Alckmin, e a senadora Simone Tebet (MDB).
Do lado dos partidos aliados, também há queixas em relação à presença maciça de petistas ligados, principalmente, ao governo de Dilma Rousseff, que não é bem avaliado pela maioria de suas lideranças. Na sexta-feira, causou perplexidade a informação de que Guido Mantega, ex-ministro da Fazenda de Lula e de Dilma, havia pedido ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) que adiasse a escolha de seu novo presidente. O ex-ministro — considerado um dos pais da “nova matriz econômica” que levou ao aprofundamento da crise vivida pelo país e abalou de forma definitiva a sustentabilidade política da então presidente — propôs o adiamento para que o governo Lula pudesse indicar outro nome que não Ilan Goldfajn, presidente do Banco Central no governo de Michel Temer (MDB) e indicado ao cargo no organismo multilateral pelo ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes.
“Quem deu a Mantega essa delegação?”, perguntou um político ouvido pelo Correio no CCBB. Ontem, o BID confirmou a data da eleição e a manutenção dos nomes já inscritos, ignorando a proposta do ex-ministro.
Guido Mantega integra o grupo temático de planejamento, orçamento e gestão do governo de transição. Sua indicação também provocou reações adversas entre aliados e no mercado financeiro, que fez a leitura de uma participação mais influente da ala chamada “desenvolvimentista” nas decisões do gabinete provisório. A presença de outro ex-ministro da Fazenda de Dilma, Nelson Barbosa, no grupo temático da economia, reforçou essa visão e ajudou a tensionar os mercados na quinta-feira.
Barbosa e Guilherme Mello, consultor econômico do PT ligado à Unicamp, vão elaborar o plano de política econômica do futuro governo em conjunto com dois especialistas egressos do PSDB de Fernando Henrique Cardoso: Pérsio Arida e André Lara Resende, mentores do Plano Real, que acabou com a hiperinflação no país. Está aí outro ponto de atrito potencial no time da transição. Arida e Resende defendem a responsabilidade fiscal ancorada em fundamentos claros e franzem a testa para teses heterodoxas de maior intervenção do Estado, apesar de reconhecidos pela criatividade com que enfrentam problemas macroeconômicos. Assessores da transição apostam que Alckmin terá papel importante nesse grupo. Como coordenador geral da transição, a última palavra (ou o voto de desempate) é dele.
As disputas entre os partidos de esquerda que integraram a frente ampla que elegeu Lula e os aliados de centro, incorporados à base do petista após o primeiro turno das eleições — como o MDB e o PSD (que aderiu na semana passada) —, devem se repetir em outros grupos temáticos. O capital político da senadora Simone Tebet (MDB-MS), ex-candidata à Presidência que integra o grupo de assistência social e combate à fome, já assusta as alas mais à esquerda do PT. O grupo trata de temas caros ao ideário da legenda, que não gostaria de perder o protagonismo na atenção aos mais pobres. Mas Tebet só não será ministra se não quiser.
A indicação de duas ex-ministras de Desenvolvimento Social da era Dilma — Márcia Lopes e Tereza Campello — foi articulada para reforçar a influência do PT no grupo temático, que ainda conta com o deputado André Quintão, de Minas Gerais, ligado aos movimentos sociais. Um interlocutor do MDB confirmou ao Correio que “há uma ciumeira danada no PT” em relação à força com que Simone Tebet entrou na transição. “Tem muita gente com medo de perder espaço para ela”, confidenciou.
Outra área em que haverá disputa por protagonismo será a agricultura, que ainda não tem nomes indicados oficialmente. Um dos principais interlocutores de Lula no setor do agronegócio, o ex-ministro da Agricultura e deputado federal Neri Geller (PP-MT), esteve no CCBB na sexta-feira para apresentar nomes à transição. Ele deu como certa a participação do senador Carlos Fávaro (PSD-MT) e do empresário Carlos Ernesto Augustin, que fizeram campanha para Lula em Mato Grosso. “A gente precisa trazer para dentro quem tem mais equilíbrio, que seja mais moderado, para que a gente possa aproximar o setor do governo e ocupar os espaços para discutir a política do ponto de vista do desenvolvimento do agronegócio”, disse Geller.
A atração dos “moderados” para os debates sobre políticas públicas voltadas ao agronegócio encontrará reações no campo da esquerda, entre os que defendem maior participação dos movimentos sociais ligados à agricultura familiar e ao cooperativismo na formação do futuro Ministério da Agricultura. Uma das ideias em análise é subdividir o grupo temático em dois, para abrigar as duas correntes e evitar atritos ente elas.
A presidente do PT e coordenadora de relações políticas da transição, Gleisi Hoffmann, teve que mandar um recado para frear a disputa por protagonismo. “O papel do conselho é procurar orientar politicamente, discutir os problemas que tem, ajudar a encontrar solução, sabendo que o processo de solução é diagnóstico, não propositivo, não é onde debatemos o programa de governo”, disse ela, após a reunião do Conselho Político da transição.