Estado economiza no social e gasta bilhões em armas
Foto: Nikolai Doitchinov – 14.dez.2022/AFP
Quando redigiu a decisão provisória que cancelava a compra, o desembargador federal Wilson Alves de Souza acatou argumentação falaciosa de uma ação popular.
Ela repetia a lógica que acompanha a crítica aos gastos com defesa no Brasil: o país tem outras prioridades, não luta guerra relevante na região desde 1870, o combate ao brutal déficit social e à desigualdade econômica tem de vir à frente.
Por evidente apelo, é tentador abdicar da defesa nacional —até você precisar dela, e o mundo no qual a Rússia invadiu a Ucrânia como se estivesse em 1930 prova que a instabilidade está aí para ficar. A questão é como o país organiza e racionaliza, ante as restrições orçamentárias, o seu gasto no setor.
Tecnicamente, a compra dos blindados italianos Centauro-2 é justificável. O Exército hoje tem 409 antigos modelos EE-9 Cascavel, fabricados pela falida empresa brasileira Engesa, para a função de reconhecimento e combate.
O modelo italiano bateu um concorrente americano-canadense e outro chinês. É um projeto moderníssimo, contratado pela Itália em 2018. Lá, já foram comprados 96 dos 150 blindados previstos, a um custo unitário até aqui de € 6,7 milhões (R$ 37,9 milhões), mas isso muda ao longo do tempo com a escala de produção.
O Centauro-2 traz uma inovação tecnológica em sua torre, com a possibilidade de uso de um canhão de 120 mm de alta pressão, o mesmo utilizado por tanques de guerra principais —veículos mais pesados sobre lagartas, dos quais o Brasil opera 296, a maioria modelos antiquados alemães Leopard-1.
Ele é produzidoo por um consórcio integrado pela Iveco, que já produz no Brasil o blindado Guarani —o que, segundo o Exército, garante alguma comunalidade de peças.
Aqui, a ideia é a aquisição de uma frota de 98 blindados, mas isso é só um plano. Mas a falha na comunicação do Exército no caso, outro problema endêmico em Forças que não gostam de discutir suas prioridades, levou ao desastre publicitário.
Durante mais de uma semana, a Força ouviu que os 98 blindados custariam R$ 5 bilhões, como se fossem pagos de uma só vez. Apenas depois da decisão do Tribunal Federal Regional da 1ª Região é que o Exército divulgou nota explicativa, em canal interno.
Segundo ela, seria assinada no dia 15 a aquisição de dois Centauro para avaliação, e o único desembolso seria de R$ 1 milhão para dar prosseguimento ao processo. Satisfeito, o Exército levaria cinco anos e R$ 3,3 bilhões, com provável financiamento mais longo, para chegar a 98 blindados.
Isso poderia ter sido esclarecido desde o começo, levando o debate para um outro nível: o Brasil precisa de tais armamentos?
Novamente, volta-se à questão das prioridades. Forças Armadas precisam se manter modernas, como lembrou o desfile de blindados da Marinha em Brasília e seus tanques fumacentos em 2021. Sem parque local para tal tipo de armamento, resta comprar lá fora.
Na América do Sul, o Brasil é o maior ator militar, embora a Colômbia tenha Forças Armadas mais experientes devido às décadas de insurgência. A Venezuela se reequipou com uma variedade de armas russas e chinesas, mas o fato é que um conflito terrestre com a ditadura vizinha é algo quase impraticável, não só pela política, mas pela geografia amazônica.
Aí entram os blindados. Se eles fizerem as vezes de tanques, nessa quantidade menor parecem adequados. Mas o que de fato falta ao Brasil hoje, prioritariamente, são sistemas de defesa antiaérea.
O país emprega apenas sistemas portáteis russos e suecos, para defesa pontual, e tem 34 canhões antiaéreos sobre viatura blindada Gepard, de origem alemã. Interceptação de aeronaves fica a cargos de antigos caças F-5, que começam a lentamente ser substituídos a partir de segunda (19) pelos modernos Gripen suecos, mas é insuficiente.
Um dos parâmetros da guerra moderna é negar a ameaças trânsito e controle de espaço aéreo, como se vê na Ucrânia. Isso demanda sistemas de média e a grande altitude, capazes de “fechar” áreas. O Brasil não tem um plano para isso, muito menos integração entre o Exército, que opera o setor, e a Força Aérea.
O país só foi ter um ministério da Defesa único em 1999. Houve avanços para unificar compras militares sob uma ótica mais racional, mas as resistências são várias. E há o problema de limites orçamentários.
Todos os projetos estratégicos do país sofreram atrasos nos últimos anos: o Gripen, o cargueiro KC-390, os submarinos, os helicópteros de transporte. Caso eloquente é o do Guarani, que deveria ter mais de 2.000 unidades entregues até o fim da década e vai se arrastar até 2040, com metade da frota.
O nó está não no tamanho do orçamento, um dos 15 maiores do mundo na casa dos R$ 100 bilhões já executados este ano. Só que cerca de 75% estão comprometidos pessoal ativo e inativo, o que deixa a margem de manobra para investimentos apertada —ainda que seja a quarta maior da Esplanada.
Especialistas avaliam que uma saída pode estar em aumentar a proporção de militares temporários nas Forças, o que aliviaria a carga previdenciária, e reduzir o tamanho dos efetivos, isso já previsto. Mas é algo de longo prazo, que demanda vontade política ora inexistente.