Lula centraliza Transição em si
Foto: Evaristo Sa/AFP
A primeira vitória de Lula numa eleição presidencial foi uma obra coletiva do PT. Derrotado nos três pleitos anteriores, em que terminou sempre em segundo lugar, ele adotou em 2002 um perfil moderado e conciliador, o famoso “Lulinha paz e amor”, moldado pelo publicitário Duda Mendonça. Outros petistas estrelados foram decisivos para o sucesso da campanha. José Dirceu profissionalizou a máquina partidária, costurou apoios e foi o cérebro da articulação política. Antonio Palocci fez a ponte com o mercado e aproximou o candidato de empresários e banqueiros, aparando arestas e reduzindo desconfianças de lado a lado. O prestígio de Dirceu e Palocci era tamanho que ambos assumiram ministérios de ponta, faziam sombra ao chefe e eram considerados dentro e fora do PT os sucessores naturais de Lula no Palácio do Planalto. Apesar do protagonismo desses dois assessores graduadíssimos, a última palavra era de Lula. Ele mandava, e os outros obedeciam, sem que houvesse exceção à regra.
Em 2022, ninguém no entorno do presidente eleito tem a influência que a dupla tinha duas décadas atrás — Palocci virou desafeto depois de fazer delação premiada, enquanto Dirceu, de forma discreta, voltou a atuar nos bastidores da política. Até por isso, Lula está mais centralizador do que nunca. Numa de suas poucas entrevistas concedidas em Brasília após a eleição, ele foi perguntado sobre as pressões para anunciar o ministro da Fazenda. “Quem ganhou as eleições fui eu, e eu obviamente quero ter inserção nas decisões políticas e econômicas deste país”, respondeu, externando uma lógica que vale para a formação de todo o governo. “O meu ministro da Economia terá a cara do sucesso do meu primeiro mandato.”
A celeuma sobre quem será o chefe da equipe econômica ganhou impulso graças a declarações do próprio Lula que apontam para caminhos equivocados na economia. Ele defendeu a revogação do teto de gastos e contrapôs a responsabilidade fiscal à responsabilidade social, um erro primário. Hoje, o nome mais lembrado nas bancas de apostas para ocupar o Ministério da Fazenda é Fernando Haddad, candidato do PT derrotado na eleição deste ano para o governo de São Paulo. Indicado para tratar do tema na equipe de transição, Haddad representou Lula no almoço anual da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), realizado no mês passado. Após o encontro, banqueiros fizeram circular a versão de que Haddad havia decepcionado os convivas porque não apresentou o programa econômico do presidente eleito nem as diretrizes de sua política para gastos e dívida pública. O convidado especial teria desperdiçado uma oportunidade de esclarecer dúvidas e de mitigar eventuais resistências ao futuro governo.
A queixa é compreensível, mas desconsidera um dado da realidade: Haddad faz o que Lula determina e cumpre aquilo que é combinado com o chefe, sem avançar um milímetro sequer. O próprio ministeriável reconheceu isso ao comentar a repercussão de sua atuação no almoço da Febraban. “Eu fui lá na condição de representante do Lula”, afirmou. “Eu não podia ir à Febraban levar uma notícia que eu não tinha. Eu entendo da parte dos operadores a ansiedade em saber como as negociações vão ocorrer, mas eu não era a pessoa mais indicada para esse papel e deixei isso claro quando declinei do convite de ir como pessoa física.”
Com exceção de Lula, ninguém sabe quem será o ministro da Fazenda. Há outros nomes ventilados para o posto, como o deputado federal Alexandre Padilha. Dentro do PT, todos concordam que, independentemente de quem seja escolhido, a definição da política econômica será feita por Lula. O presidente será o superministro da Fazenda, delegando tarefas ao ocupante do cargo. Não haverá “Posto Ipiranga”, um auxiliar com nível de autonomia como o desfrutado por Paulo Guedes durante alguns períodos do governo de Jair Bolsonaro. “O Lula está muito fechado. O mais importante é saber qual será a política econômica. O nome do ministro importa menos”, diz uma estrela do PT que integra a transição de governo.
O plano de Lula, conforme disse publicamente, é anunciar a maioria dos ministros depois do dia 12, quando haverá a cerimônia de diplomação dele e do vice-presidente eleito Geraldo Alckmin no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O cronograma leva em consideração outro fator importante. O presidente só quer distribuir cargos aos partidos que negociam adesão ao futuro governo, como MDB, União Brasil e PSD, depois que eles derem os primeiros votos a favor da aprovação da chamada PEC da Transição, que tira o Bolsa Família, entre outras despesas, dos limites do teto de gastos. Cuidando pessoalmente dessas tratativas partidárias, Lula não quer pagar de forma antecipada pela adesão ao governo. A sua equipe terá ministros de sua cota pessoal, como os da Fazenda, da Casa Civil e da Defesa, e outros indicados pelas legendas governistas. Há muita especulação sobre quais serão os escolhidos. Cientes dos humores e do perfil centralizador do chefe, os nomes mais cotados ou estão em silêncio ou só falam aquilo que recebem autorização para falar.
A regra do comedimento absoluto gera situações como a ocorrida na terça 6. Durante um jantar num ponto de encontro de políticos em Brasília, um ministeriável foi perguntado se estava tudo certo para ele assumir a pasta. Petista de carteirinha, ele respondeu com a cautela devida. “Só tem um cara que sabe, e ele não tem falado nada para ninguém. Sabe quando vai vazar um ministro do Lula? Nem para a Janja, nem ela sabe os nomes”, disse, referindo-se à socióloga Rosângela da Silva, esposa do presidente eleito, presença cativa nas reuniões políticas realizadas pelo marido e hoje uma das pessoas com maior poder de influência ao redor do presidente eleito. Outro candidato a ministro, no mesmo ponto de encontro da corte brasiliense, mas num dia diferente, começou a listar condições para assumir uma pasta na Esplanada — condições que, se não fossem atendidas, o levariam a recusar o convite. Depois de ouvir a bravata, o interlocutor atalhou: “Cara, você acha que tem peito para confrontar o Lula? Se uma frase dessas chegar ao ouvido do presidente, você deixa de ser ministro”. A tréplica teve ares de rendição: “Estou falando aqui porque tenho intimidade com você”.
Lula está centralizando as decisões nesta fase de transição por diferentes motivos. Um deles é o fato de antigos companheiros terem sido abatidos por escândalos de corrupção e condenados à prisão. É o caso de Dirceu e Palocci, que estavam ao lado do petista quando ele ouviu, em 2002, duas décadas atrás, o anúncio pela televisão de que acabara de ser eleito presidente da República. Outro motivo é a falta de políticos em seu entorno capazes de lhe fazer um mínimo de frente. Apenas poucos antigos conselheiros, como Celso Amorim e Luiz Dulci, conversam de maneira franca com o presidente eleito. O restante assume uma postura definida, na maioria dos casos, como subserviente. Apesar de ter sido governador de São Paulo por quatro mandatos, Alckmin estava praticamente aposentado da política quando foi convidado para ser vice na chapa presidencial. Até aqui, tem se mostrado um auxiliar disciplinado e obediente. “Sou o copiloto de Lula”, costuma repetir Alckmin.
Coordenador técnico da equipe de transição, Aloizio Mercadante nunca gozou da simpatia dos políticos em geral, dos petistas em particular e de Lula especialmente, mas sempre foi considerado um excelente cumpridor de ordens pelo presidente eleito. Em 2009, Mercadante chegou a desistir de renunciar ao cargo de líder do PT no Senado — decisão que anunciara como irrevogável — depois de ser enquadrado pelo presidente. “Pobre Mercadante, até para sair da liderança tem de pedir autorização ao Lula”, provocou na época o então deputado federal Fernando Gabeira.
Além de Alckmin e Mercadante, a linha de frente da transição conta com a deputada Gleisi Hoffmann. Ministra da Casa Civil no governo Dilma Rousseff, Gleisi chegou a ser cotada para um ministério, mas o próprio Lula, de quem se aproximou no período em que ele ficou preso, decidiu que ela permanecerá na presidência do PT. “Em 2002, o Lula e o PT ganharam a eleição. Naquela época, ele debatia com quatro, cinco pessoas, todos da cozinha dele. Agora, é diferente. Ele chama pessoas que lideram regionalmente ou em determinados assuntos. Não tem mais um petit comité. Ele está mais soberano”, afirma um integrante da direção do partido.
Único brasileiro eleito três vezes para governar o país, Lula vive uma história de redenção. Ele conseguiu anular as suas condenações, recuperar a liberdade e os direitos políticos e realizar a proeza de impedir a reeleição de um mandatário no exercício do cargo, algo que nunca tinha acontecido antes. Experiente, o petista sabe que o resultado das urnas reflete um tanto de seu prestígio pessoal, o que permitiu a formação de uma frente ampla para derrotar Jair Bolsonaro. O fato de Lula chamar para si até aqui todas as decisões importantes relacionadas ao futuro governo não é um problema. Em tese, pode até ser uma opção benéfica caso detenha o sectarismo de setores da esquerda e permita uma gestão ampla, que dialogue com toda a sociedade e aprove as medidas necessárias à modernização do Estado brasileiro e à redução da desigualdade e da pobreza. Felizmente, aos poucos, começam a surgir sinais nesse sentido.
O atual modo soberano de Lula tem a ver ainda com a percepção de que só o ex-presidente tem a habilidade necessária para administrar a intrincada rede de apoios que o acompanha. Contra o seu histórico de hegemonismo, o PT pode, por exemplo, ficar sem o comando dos ministérios da Educação e da Saúde. Não é certo que isso ocorrerá, mas o mero debate dessa possibilidade mostra a disposição de Lula para a composição. O partido também não lançará candidatos às presidências da Câmara e do Senado, porque sua prioridade não é controlar o Congresso, mas ter maioria para aprovar projetos prioritários. Na Febraban, o disciplinado Haddad falou em reforma tributária e desburocratização. A partir de 1º de janeiro, quando começa o novo governo, o país conhecerá finalmente em detalhes a agenda e os compromissos de Lula. Se ele continuará centralizador ou não no exercício do mandato é uma questão que vai definir mais o estilo de gestão adotado no “Lula 3”, sem necessariamente ter impacto positivo ou negativo sobre os destinos do país. Do alto do empoderamento estabelecido a partir de sua incrível ressurreição política, chancelada pelas Justiça e pelas urnas, o fundamental mesmo é que honre o voto de confiança recebido dos eleitores.