Resistência no Itamaraty certamente vai virar filme
Foto: Arte/UOL
A reportagem do UOL que dá conta de um movimento de “resistência” no Itamaraty contra o suicídio diplomático comandado por Jair Bolsonaro e o seu ex-chanceler psicótico rende um filme de espionagem no melhor estilo 007. As histórias desse período nefasto darão muito material para literatura, cinema e teatro. Eis a contrabuição (involuntária) de Bolsonaro para a Cultura
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Dois diplomatas entram em um café em uma capital europeia. Um deles é brasileiro e carrega informações ultrassecretas. Sua missão é desarmar uma bomba. Parece filme de espionagem, mas a cena é real e se repetiu no governo Bolsonaro.
Temas como mudanças climáticas, direitos humanos, a questão palestina ou mesmo a Guerra da Ucrânia foram tratados nesses encontros sigilosos, confirmados pelo UOL com 13 funcionários do Itamaraty, incluindo embaixadores e servidores administrativos, e em um amplo e ainda inédito estudo de pesquisadoras da FGV e de Oxford. A rede não envolveria apenas alguns poucos nomes e, de fato, teria se espalhado por alguns dos principais departamentos da chancelaria.
Os objetivos da rede clandestina eram:
Permitir que o outro país tivesse tempo para reagir a mudanças na política externa do Brasil, sem que uma crise fosse estabelecida
Preservar a credibilidade do Brasil no exterior e salvar décadas de uma construção da diplomacia nacional
Para diplomatas, a palavra correta seria resistência, que existiu “em nome da democracia e da soberania”, e sempre ocorreu dentro de parâmetros da legalidade. No fundo, tais atos não eram nada mais que uma tentativa de “equalizar posições” diante daqueles que estavam destruindo as estruturas do estado. A verdadeira sabotagem, neste sentido, era o que estava ocorrendo com o sequestro de décadas da diplomacia brasileira para atender aos objetivos da extrema direita.
Os encontros clandestinos eram apenas uma das táticas da resistência, que também:
Montou um esquema de contatos diretos com governos estrangeiros, sem ter de passar pela cúpula do Itamaraty e com o objetivo de desarmar crises diplomáticas.
Limitou-se a ler “a instrução que chegou de Brasília”, em reuniões na ONU, OMS ou OEA, sem uma atuação de empenho para convencer os demais países a seguir o Brasil em suas posições.
Copiou documentos que poderiam ser usados para defender um diplomata contra acusações e registrar a ilegalidade de certos atos do Planalto.
Gravou reuniões de forma clandestina nas quais a cúpula bolsonarista ordenou a suspensão de termos de documentos ou o veto a determinadas resoluções que citassem a palavra “gênero” ou outros temas delicados.
Vazou informações para a sociedade civil sobre o posicionamento do Brasil na esperança de que uma pressão pública fosse feita para impedir que um determinado ato fosse concretizado.
Publicou artigos sob o nome de outra pessoa ou de um acadêmico.
“Arrastou o pé”, diminuindo o ritmo de trabalho na implementação de instruções estabelecidas pela cúpula bolsonarista.
Enganou a chefia ou informou o que era absolutamente necessário, ocultando da cúpula situações ou posições por parte de outros governos.
Realizou reuniões sem registros na agenda oficial, impedindo que certos temas ou debates entrassem no radar da direção.
Saíram de cena a tradição e as nomeações técnicas, que sempre guiaram de forma explícita desde a promoção de diplomatas até as posições do Brasil no exterior, e entraram as indicações políticas e o alinhamento ideológico compulsório ao núcleo bolsonarista.
As mesmas condições foram identificadas na pesquisa coordenada pela professora da FGV Gabriela Lotta, em parceria com Izabela Corrêa, de Oxford, e Mariana Costa, também da FGV.
As pesquisadoras entrevistaram diplomatas em diferentes posições na carreira e que estão alocados em distintos países e setores do Itamaraty.
Todo o levantamento é feito de forma sigilosa e anônima, para preservar a identidade dos entrevistados.
Segundo os funcionários ouvidos a gestão Bolsonaro promoveu:
Monitoramento de diplomatas sobre o que curtiam nas redes sociais, se eram membros de partidos políticos ou até com quem eram casados. Uma funcionária relatou que não foi promovida depois que “foi descoberto” que seu marido trabalhou em um governo anterior.
Substituição de funcionários que se dedicavam a estudos de temas contrários à agenda de Bolsonaro como clima, meio ambiente, gênero e direitos humanos, por pessoas leais ao governo.
Promoções e transferências para o exterior foram transformadas em moeda de troca e instrumento de ameaça.
Palavras como “gênero”, “Cuba” e “mudanças climáticas” foram vetadas, evitadas ou até apagadas de documentos oficiais do passado. Uma servidora admitiu que teve como função modificar portarias, discursos, informações no site oficial e telegramas.
Mulheres e homossexuais foram especialmente alvo dessa nova fase. “Há uma masculinização e a volta de certas práticas, como piadas no corredor”, contou Gabriela Lotta, a pesquisadora da FGV.
O que mais escutava nas entrevistas era: O tio da Sukita se normalizou
Procurado para comentar a reportagem, o Ministério das Relações Exteriores se manteve em silêncio.
O número de pessoas removidas de seus cargos chegou a tal ponto que consolidou-se o apelido informal usado para designar diplomatas loteados em locais onde não faziam nada: “Departamento de Escadas e Corredores”.
Um exemplo emblemático aconteceu logo nos primeiros meses da gestão do ex-chanceler Ernesto Araújo, que decidiu isolar e deixar sem função o diplomata Audo Faleiro. A justificativa: ele teria trabalhado para os governos do PT.
Em meados de 2019, Faleiro deixou seu posto em Paris para voltar ao Itamaraty. Foi nomeado como chefe da Divisão da Europa e, dois dias depois, o gabinete de Araújo informou que o cargo teria de ser retirado.
O diplomata ficou por seis meses na biblioteca do Itamaraty, aguardando um novo cargo. Foi apenas em março de 2020 que ele foi colocado no Departamento Financeiro. Ainda assim, sem o direito de ir a algumas reuniões e com o compromisso de que, na ausência da chefia, não assumiria o departamento.
Para muitos, Faleiro foi usado como exemplo: Olha o que pode ocorrer contigo. Não faça isso se não quiser virar o próximo Audo
Os relatos coincidem com quatro anos que transformaram o Brasil em um pária internacional.
Para a professora da FGV Gabriela Lotta, o impacto não se limitou aos muros do Palácio do Itamaraty.
“A diplomacia brasileira tem sua moral e influência construídas na tradição e expertise. O governo negou isso, prejudicou a política externa e enfraqueceu a diplomacia e a imagem do Brasil.”
Na opinião da pesquisadora e dos embaixadores e diplomatas ouvidos pelo UOL, resistir foi a saída encontrada para sobreviver a um dos momentos mais tenebrosos da democracia brasileira.
Muitos, porém, pagaram um preço elevado, tanto profissionalmente como em relação à saúde mental.
O uso de tarja preta foi disseminado.