Craques do futebol não foram às exéquias de Pelé
Foto: Nelson Almeida/AFP
Dezenove de novembro de 2008. Inauguração do Estádio Bezerrão, no Gama. Enquanto Edson Arantes do Nascimento, Rei Pelé, ensaia o pontapé inicial do duelo entre Brasil e Portugal, o narrador Galvão Bueno deixa escapar umas verdades na transmissão em canal aberto da tevê Globo para todo o Brasil. Convidado pelo então governador José Roberto Arruda para a festa, o melhor jogador de todos os tempos é cumprimentado pelos comandados de Dunga. A cena é descrita das cabines da arena do Distrito Federal como o Dia do Perdão.
“Andou tendo uma época de uma certa birra dos jogadores da Seleção com Pelé. Os jogadores não estavam com a grandeza suficiente para entender o que significa esse homem que está no centro de campo”, comentava Galvão. E continuou: “Aí está Edson Arantes do Nascimento, o Rei Pelé, o maior jogador de todos os tempos. E que bonito ver cada um dos jogadores da Seleção Brasileira indo abraçar Pelé. Esse momento estava faltando no futebol brasileiro. Uma coisa que, quem ama o futebol, ficou muito triste de ver que não quiseram receber das mãos de Pelé a taça de 2002”, lembrou.
Coincidentemente, dos 45 jogadores campeões da Copa do Mundo em 1994 e 2002, apenas um esteve na Vila Belmiro nas 24 horas de velório. O volante Mauro Silva representava a Federação Paulista de Futebol. Ele é vice de Reinaldo Carneiro Bastos. A maioria prestou homenagem nas redes sociais. Alguns alegaram compromissos particulares.
A decepção dos campeões de 1994 e de 2002 com Pelé tinha a mesma frágil justificativa: os palpites do Rei. Antes do Mundial dos Estados Unidos, ele cravou a Colômbia favorita. Romário levou a Seleção ao título. Em 2005, o Baixinho revelou a mágoa acumulada ao falar sobre o conselho do Atleta do Século 20 para que ele se aposentasse. “Pelé calado é um poeta”, disparou. No último dia 29, o senador reverenciou o camisa 10 nas redes sociais. “Inspirou gerações”. Em 2002, Pelé apontou França e Argentina, ambas eliminadas precocemente na fase de grupos daquela edição.
Na cerimônia de entrega da taça, o presidente Joseph Blatter convidou Pelé para entregar a taça ao capitão Cafu. Os jogadores não queriam recebê-la do Rei. A habilidade política de Blatter, do então presidente da CBF, Ricardo Teixeira, e da Conmebol, Nicolás Leoz, abafou o caso na festa. Blatter, Pelé e Leoz entregaram o troféu ao capitão do penta.
Foi a segunda vez em menos de um mês que tetra e pentacampeões não compareceram a um tributo ao Rei Pelé. Em 11 de dezembro, o Correio cobriu em Doha, no Catar, a homenagem feita pela Casa da Conmebol ao Rei. Em uma cena constrangedora, coube ao argentino aposentado Javier Zanetti discursar em nome dos jogadores. Naquele mesmo instante, campeões mundiais como Ronaldo, Roberto Carlos, Kaká, Ronaldinho Gaúcho, Cafu e Gilberto Silva estavam hospedados no badalado hotel da Fifa, em Lusail.
Jogadores influentes de 1994 e 2002 negaram boicote às homenagens ao Rei. Havia um discurso aparentemente ensaiado de que a logística até Santos não era fácil e que os jogadores estavam desmobilizados, em férias, em pontos distantes da cidade litorânea. Pelé estava hospitalizado desde 29 de novembro. A situação se agravou em 21 de dezembro e morreu um mês depois. Do falecimento ao sepultamento foram cinco dias. Anúncio antecipado de que o velório começaria na manhã de segunda-feira.
Além de Mauro Silva, o volante Clodoaldo, titular do Brasil na campanha do tricampeonato na Copa do Mundo de 1970, foi até a Vila Belmiro homenagear pessoalmente Pelé. Entre os dirigentes de entidades da bola, os presidentes da Fifa, Gianni Infantino; da Conmebol, Alejandro Domínguez; e da CBF, Ednaldo Rodrigues.
A lista de ausências no velório Edson Arantes do Nascimento chamou a atenção não somente pelo fato de o homenageado ser Pelé, mas, principalmente, pelo protagonismo dele dentro e fora de campo no esporte brasileiro. O Rei entregou o prêmio de melhor do mundo da Fifa a Ronaldo (1997) e a Kaká (2007). Em 2009, foi uma das peças-chave para a escolha do Brasil como sede dos Jogos Olímpicos do Rio-2016. Dois anos antes, não apareceu na confirmação do Brasil como sede da Copa de 2014 porque oficialmente estava na Alemanha. Nos bastidores, a justificativa era um suposto atrito com o então presidente da CBF, Ricardo Teixeira.
O brasiliense Kaká foi um dos principais alvos de críticas. Durante a Copa do Mundo no Catar, o jogador criticou a relação do povo brasileiro com os ídolos no futebol. “Nós, brasileiros, às vezes não reconhecemos nossos talentos. Se vocês (estrangeiros) virem o Ronaldo Fenômeno andando por aqui, vão pensar ‘uau’, porque ele tem algo diferente. No Brasil, é só um mais um gordo andando pela rua”, disparou o ex-meia à Bein Sports.
Comentarista do UOL, o ex-centroavante Walter Casagrande Júnior criticou a atitude dos campeões mundiais. “Cafu (capitão do penta) justificou que não conseguiu antecipar o voo e ir ao velório, mas só o fez depois de receber muitas críticas. Por que não falou antes? O tempo passou, mas a mágoa desses mimados, não. Nunca dedicaram nada ao Rei. Nenhuma fala, nenhuma homenagem, simplesmente ignoraram a existência do Rei Pelé. Não ter nenhum representante desses dois títulos no velório do Pelé foi vergonhoso para a história do futebol brasileiro”, escreveu.
“Os jogadores pentacampeões deveriam se unir, como fizeram para me atacar, em homenagem ao Pelé. Cadê o Kaká, que falou que o brasileiro não reconhece seus ídolos? Pois bem, Kaká, depois do que vimos no velório do Pelé, ficou claro que quem não reconhece os grande ídolos é você. Ou talvez você tivesse ido por um cachê interessante.”
Titular na Copa de 2002, o ex-goleiro Marcos apresentou a justificativa dele para a ausência. Acompanhado de uma foto dos pais, o texto afirmou que “ninguém aqui das redes foi (no velório deles). Eu fui pra chorar, orar e sofrer por saber que nunca mais iria vê-los, mas não pedi homenagem de ninguém, não julguei ninguém, não dei entrevista, e pra mim não foi um show”. Ele disse que entende a cobrança feita por terceiros devido ao que Pelé representa para o futebol brasileiro, mas afirmou que “ao Edson, hoje, só posso fazer uma oração e não preciso me aparecer para isso!”. concluiu no texto.
Casagrande também criticou a ausência de Neymar. O atacante cumpriu suspensão no domingo na derrota do Paris Saint-Germain para o Lens pelo Campeonato Francês. Sabia da programação das homenagens a Pelé, mas elegeu o pai como representante em Santos. Alegou que não tinha liberação do clube. Os jornais L’Équipe e Le Parisien desmentiram a justificativa. Ambos informaram que o clube não se opôs. No Twitter, o setorista do clube Hadrien Grenier acrescentou: “O PSG absolutamente não proibiu Neymar de viajar ao Brasil para o enterro de Pelé”, informou por meio da conta no Twitter. Enquanto isso, Neymar e Marquinhos eram filmados cantando em uma festa.
Questionado sobre a tentativa de Neymar vir ao Brasil, o pai do jogador confirmou que ele não iria a Santos. “Não, não, não consegue (vir). Hoje estamos aqui para sustentar a família, perdemos muito. Ele inspirou tantas pessoas e o esporte. Inspirou todas as gerações, sempre foi uma referência”, disse Neymar pai ao ser perguntado, na Vila Belmiro, se o filho viajaria até Santos.
“Neymar foi representado pelo pai, mas de madrugada estava numa festa curtindo um samba — isso mostra toda a dor que sentiu pela morte do Rei Pelé. E os outros? Daniel Alves, que se acha o maior jogador por ter o recorde de títulos, nem uma postagem fez. Será que o Tite (ex-técnico da Seleção) ou o Juninho Paulista (coordenador de seleções) não poderiam aparecer para representar a última seleção a jogar uma Copa?”, questionou.
Protagonistas da última final da Copa do Mundo, Lionel Messi e Mbappé estavam de folga nos últimos dias. O argentino descansava na vizinha Buenos Aires. O francês poderia estar no velório do Rei do Futebol. Muito elogiado por Pelé nas redes sociais, Mbappé aproveitou alguns dias de folga para ir até os Estados Unidos assistir a uma partida da NBA. Enquanto isso, Cristiano Ronaldo embarcava rumo à Arábia Saudita para se apresentar ao Al-Nassr.