Juristas temem ‘exagero’ no combate a fake news
Foto: Mauro Pimentel / AFP
Atos implementados pelo governo Lula com o argumento de combate às fake news, especialmente a criação de uma estrutura dentro da Advocacia-Geral da União (AGU), despertaram preocupação por abrirem brecha para o cerceamento de opiniões contrárias à gestão. Um decreto instituiu uma procuradoria na AGU com a atribuição de representar a União em processos judiciais para “resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas”.
Não há na lei brasileira uma definição sobre o que é desinformação — o projeto de lei das fake news, que busca regulamentar o assunto, ainda está em discussão no Congresso. O vácuo amplia o risco, por tornar a caracterização mais genérica, segundo especialistas.
Já a Secretaria de Comunicação Social (Secom) contará com um braço que terá entre suas funções promover ações buscando “a liberdade de expressão, do acesso à informação e o enfrentamento à desinformação e ao discurso de ódio na Internet”.
Críticos da medida que pode ampliar as prerrogativas de combate à desinformação por parte da AGU e do governo federal entendem que o órgão já pode, hoje, mover uma ação com o objetivo de impedir danos à sociedade em casos de campanhas de desinformação, sem a necessidade de criação da estrutura específica. Alertam ainda para o risco de, mesmo a decisão final sendo do Judiciário, que a atuação do Executivo possa coibir a liberdade de expressão, inclusive em futuros governos, ao ser usada para intimidar opositores com ações judiciais.
Professor de Direito Público da USP, o advogado Floriano de Azevedo Marques Neto argumenta que distinguir o que é informação do que não é não deve ser feito a partir de um entendimento amplo, com marcos legais democraticamente debatidos como parâmetros para essa separação. Ele vê com preocupação a hipótese de uma estratégia de intimidação por meio da abertura de processos.
— As instituições não podem desconsiderar a desinformação como fenômeno contemporâneo, mas errar a mão no tratamento dado ao tema traz o risco de se comprometer garantias e direitos inegociáveis. Posto como está, antes de ter reflexão e marco legal, esse órgão passa a ter poder de mover ação contra tudo e todos os professantes da desinformação. Não acho que seja o caso da atual AGU, mas, se você tem amanhã ou depois uma AGU mais capturada por interesses ideológicos, ela pode inverter essa competência e passar a agir contra a liberdade de expressão. Já tivemos uma AGU recentemente atuando contra a liberdade jornalística — lembra Marques Neto.
O jurista Gustavo Binenbojm, professor da Uerj, destaca que há um diagnóstico correto de que as redes sociais contêm campanhas de desinformação com potencial de produzir danos a pessoas, a grupos e a políticas públicas legítimas de governos democráticos, mas defende que os remédios que o governo propõe “podem se tornar venenos”.
— Qualquer governo tem nas mãos um extraordinário arsenal para intimidar veículos e pessoas que venham a discordar das suas interpretações sobre os fatos. A questão é se esse arsenal vai inibir o livre debate e discussão de ideias ou apenas vai ser usado quando houver campanha de desinformação com clara violação da lei. O diagnóstico sobre o problema está correto, mas os remédios deveriam ser mais amadurecidos — diz Binenbojm. — É preferível para o governo focar em campanhas de esclarecimento e não em medidas inibitórias, porque o risco é menor.
Advogado e especialista em tecnologia, Ronaldo Lemos também vê com ressalvas a criação do órgão. Ele ressalta que a AGU já tem por força constitucional a função de representar a União e assessorar o Executivo e que as competências para qualquer tipo de combate à desinformação “têm de ficar implícitas dentro dessa função”.
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— Explicitar especificamente o combate à desinformação parece ser uma tentativa de ampliar o mandato da AGU — avalia Lemos. — Não é saudável que a AGU inclua nas suas atividades rotineiras o combate à desinformação. A possibilidade de abusos e de extrapolação de competências é muito grande. Uma das grandes conquistas do Marco Civil foi justamente assegurar que o Poder Executivo não tenha ingerência administrativa sobre as comunicações pela internet. Essa competência cabe ao Legislativo e ao Judiciário. Ampliar poderes do Executivo sobre comunicações na rede é em geral típico de países autoritários.
De acordo com a AGU, que está sob comando de Jorge Messias, o objetivo da procuradoria no órgão é atuar para combater “fatos inverídicos ou supostamente descontextualizados levados ao conhecimento público de maneira voluntária com objetivo de prejudicar a adequada execução das políticas públicas, com real prejuízo à sociedade”, segundo informou ao GLOBO.
As demandas serão levadas à apreciação do Judiciário, e a procuradoria não é responsável pelos julgamentos dos casos. A AGU diz que seguirá entendimentos já existentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Um exemplo são as fake news contra urnas eletrônicas, alvo de resolução da Corte eleitoral aplicada no pleito passado. Essa atuação será baseada nas normas vigentes e nos precedentes dos tribunais que disciplinam o assunto, e também na própria sistemática de atuação das agências de checagem de informações falsas.
A AGU acrescentou que “sob nenhuma hipótese” a procuradoria “cerceará opiniões, críticas ou atuará contrariamente às liberdades públicas consagradas” na Constituição. “Ao contrário, sua atuação será, exatamente, para proteger essas liberdades. Além disso, ressalta-se que a divulgação de informação com erro não intencional não é desinformação”, ressaltou. O órgão disse ainda que o funcionamento da nova estrutura será debatido com a sociedade, incluindo juristas e a imprensa. A Secom não se posicionou oficialmente, mas, segundo O GLOBO apurou, as linhas de ação da secretaria que vai tratar de desinformação também vão passar por debates públicos.