‘Lula salvou o Brasil’, diz Globo
Foto: O Globo
Um dos mais influentes nomes do jornal O Globo cobre o ex-presidente de elogios, acompanhando uma linha editorial inacreditavelmente favorável tanto no impresso quanto na TV. Confira a seguir
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Lula nos salvou do pior pesadelo, dando vida nova à democracia terrivelmente ameaçada por Jair Bolsonaro. O Brasil deve lhe agradecer por não retroceder aos tempos das trevas.
Lula quer trazer de volta para o orçamento da União os pobres e os miseráveis, só lembrados nos últimos quatro anos durante os poucos meses que antecederam a eleição presidencial. O Brasil deve lhe agradecer por prometer três refeições por dia a mais de 30 milhões de brasileiros que passam fome.
Lula indicou mais mulheres para o Ministério do que Dilma Rousseff, incluiu mulheres, negros, indígenas, pessoas com deficiência e a comunidade LGBTQIA+ na pauta da política nacional. O Brasil deve lhe agradecer por estancar a agenda retrógrada de seu antecessor e restabelecer a voz de grupos que estavam excluídos do debate desde 2018.
Lula devolveu aos direitos humanos a prioridade que o tema necessita num país tão desigual e violento como o nosso. O Brasil deve lhe agradecer por nomear o incrível advogado e filósofo Sílvio Almeida para tocar uma pauta que antes cabia à inacreditável advogada e pastora Damares Alves.
Lula nomeou Nísia Trindade para o Ministério da Saúde. O Brasil deve lhe agradecer por entregar a pasta mais sensível de seu governo à presidente da Fiocruz, entidade que fabrica vacinas, objeto de desprezo do general Pazuello e de Marcelo Queiroga, últimos dois ocupantes do cargo.
Lula tomou medidas contra fake news. O Brasil deve lhe agradecer por ter vencido a eleição e interrompido um projeto de viés autoritário alavancado por mentiras espalhadas nas redes sociais pelo gabinete do ódio instalado no Palácio do Planalto.
Lula não nomeou generais, fora um veterano segurança de seu primeiro mandato para uma pasta técnica. O Brasil deve lhe agradecer por sepultar passado de triste memória.
Lula recriou a Cultura, tirou pastores da Educação e revalorizou a ciência. O Brasil deve lhe agradecer por restabelecer luz e inteligência na Esplanada dos Ministérios.
Lula assinou decretos para desarmar os brasileiros. O Brasil deve lhe agradecer por salvar vidas e impedir o fluxo de armas para o tráfico e a milícia.
Lula quer salvar a Amazônia, nomeou Marina Silva para o Ministério do Meio Ambiente, revogou decretos que abriam florestas e reservas para madeireiros e garimpeiros. O Brasil e o mundo devem lhe agradecer por trabalhar a favor da preservação da vida no planeta.
Lula acertou mais do que errou nos primeiros cinco dias de governo, mas o que vira notícia são os erros. Um dos mais visíveis, e para muitos petistas o mais irritante deles, foi a nomeação de Daniela do Waguinho para o Ministério. Bastaram três dias para repórteres descobrirem que a nova ministra teve na campanha o apoio de milicianos cariocas. Ter amigo miliciano era coisa dos graúdos do governo anterior.
Lula não combinou com seus ministros o que era permitido dizer e o que não deveria ser expressado. Achou que todos estavam sintonizados. Enganou-se e teve que mandar o ministro da Casa Civil desmentir o ministro da Previdência, que anunciou uma contrarreforma previdenciária. Teve que fazer o mesmo, por motivos idênticos, com o ministro do Trabalho.
Lula foi obrigado a desautorizar Janja que cogitou barrar a imprensa no jantar da posse no Itamaraty. A primeira dama achou que os jornalistas poderiam constranger convidados, aparentemente ignorando que repórter só constrange quem tem contas a pagar na Justiça. Na posse de Bolsonaro, a imprensa foi varrida de todas as cerimônias. Repetir mesmo que parcialmente medida do antecessor não daria mesmo em boa coisa.
Lula sabe que capital de boa vontade não dura muito. O governo precisa não apenas apresentar resultados em prazo razoável como também mostrar que está encaminhando soluções. Apontar para o lado certo ajuda muito. Não falar bobagem também ajuda. Não tomar iniciativas quem lembrem práticas autoritárias do antecessor ajuda mais ainda.
Lula e somente Lula poderia resgatar o Brasil antes que o país despencasse no precipício aberto por Jair Bolsonaro. Qualquer outro candidato muito provavelmente perderia a eleição para a campanha do ex-presidente, turbinada com bilhões de reais dos cofres públicos e milhões de notícias falsas que invadiram todas as casas brasileiras.
Lula salvou o Brasil, que deve lhe agradecer, mas que também saberá lhe cobrar. Até porque, “um governo não precisa de puxa-sacos nem de tapinhas nas costas”.
Vale a pena destacar o papel do ex-presidente José Sarney na posse de Lula e em outras cerimônias neste início de governo. No Congresso, foi emocionante seu reencontro com o ex-presidente Júlio Maria Sanguinetti, do Uruguai. Sarney, Sanguinetti e Raúl Alfonsín, da Argentina, foram os presidentes que impulsionaram e fundaram o Mercosul nos anos 1980. O ex-presidente esteve em diversas posses em Brasília, um verdadeiro arroz de festa. Na do ministro Alexandre Padilha, outro momento para se guardar na memória foi protagonizado pela ex-presidente Dilma Rousseff, que levantou-se para ajudar o nonagenário Sarney a sentar. Sarney e Dilma, aliás, foram os únicos dois ex-presidentes brasileiros vivos que compareceram à posse de Lula. Bolsonaro fugiu. Fernando Henrique não foi por razões de saúde. Michel Temer não precisa explicar a razão da sua ausência. E Fernando Collor não apareceu, mas também não fez falta.
Por falar em Mercosul, Lula tem uma visão bastante interessante sobre os líderes políticos da Argentina e os rumos que o vizinho pode tomar. O presidente gosta muito do seu colega Alberto Fernández, mas não tem a menor paciência com Cristina Kirchner. Acha Fernández dedicado, ligado e preocupado com o futuro do seu país. Sobre Cristina, diz que ela é ultrapassada, vive politicamente como se ainda estivesse nos anos de 1980, e entende que ela também pensa no futuro, mas no seu futuro.
O senador e ex-vice-presidente Hamilton Mourão tem uma concepção muito própria, e obviamente equivocada, do que é revanchismo. Tentando se cacifar como líder da extrema direita que anda meio perdida desde a fuga de Jair Bolsonaro para Orlando, Mourão classificou como revanchismo de Lula o decreto que limita a compra e o porte de armas e munições e o que revoga nomeações e desonerações de última hora feitas pelo governo anterior. O ex-vice também disse que o PT deve “despir-se de seus preconceitos políticos, econômicos e ideológicos”. A observação poderia até fazer sentido se não tivesse partido de quem partiu.
Artigo assinado pelo ex-ministro da Cultura Juca Ferreira na Folha de S. Paulo permite alguma apreensão sobre o que pode estar em curso no novo governo na área da música. Juca citou um antigo documento assinado por entidades de produtores, editores e de cooperativas de música que propõe, entre outros pontos, uma nova política de arrecadação de direitos autorais e a “garantia da execução da diversidade da música brasileira nos meios de comunicação”. No primeiro ponto o que se teme é que volte a andar a velha proposta de se criar uma empresa pública para substituir o Ecad, a entidade de arrecadação privada e sem fins lucrativos que reúne sete escritórios de representação de artistas. O segundo é uma interferência indevida no gerenciamento de outra atividade privada, a radiodifusão. Garantir a execução, estabelecida pela força do Estado, é obrigar a execução, o que é inconstitucional.
Mauro Vieira, o chanceler nomeado por Lula, era embaixador do Brasil na ONU quando Jair Bolsonaro fez seu primeiro discurso na Assembleia Geral, em setembro de 2019. Uma semana antes, Vieira recebeu um telefonema de um diplomata do gabinete do então ministro Ernesto Araújo com um recado: “O presidente não quer ver sua cara. Compre uma passagem para qualquer lugar e suma por duas semanas”. Apesar do tom abusado, Vieira respondeu que viajaria e que seu alterno, o embaixador Frederico Duque Estrada Meyer, assumiria as funções. O interlocutor acrescentou: “Não, quando desligar aqui vou telefonar para o Fred com o mesmo recado”. Os dois foram acusados de serem comunistas por um membro do escritório brasileiro na ONU. A mentira colou (evidentemente nenhum deles é comunista) e os dois embaixadores foram defenestrados logo em seguida. Vieira, que já havia sido chanceler no governo Dilma, foi designado para a embaixada da Croácia, considerado posto de nível B no Itamaraty. Fred virou cônsul numa longínqua província chinesa.
Todas as posses em Brasília são concorridas dado que elas definem troca de poder e tudo o que isso representa. Mas há muito tempo não se via nada como agora. Para duas posses realizadas no Planalto na quarta-feira, de Alckmin e Marina, as filas para entrar davam voltas no palácio. O público era outro e o clima nem de longe se parecia com o da frieza dura dos últimos quatro anos. Mesmo os servidores trabalhavam com outra cara, mais leves e descontraídos.
“Se o Stukinha fosse o lateral direito da seleção, o Brasil não teria perdido para a Croácia na Copa do Mundo”. A frase capturada numa rede social, pena que não me lembre da autoria, revela como foi impactante a presença abundante do fotógrafo oficial Ricardo Stuckert, o Stukinha, na posse de Lula. Ele correu tanto e com tanto fôlego que se fosse jogador conseguiria voltar a tempo para recompor a defesa naquele contra ataque fatal.
Encerro hoje minha coluna no GLOBO. Passei aqui 34 anos. Fui repórter, correspondente, editor, diretor de redação e colunista. Fui feliz. Mas jornadas terminam, mesmo as mais felizes. Permaneço com o email atual mais um mês, mas desde já posso ser alcançado em ascanioselemecom@gmail.com. Também sigo no Instagram @selemeascanio, e no Twitter @ascanioseleme. Agradeço ao leitor pela paciência, pelo apoio e pelas críticas que me endereçaram neste muitos anos de convivência. Agradeço ao GLOBO pela parceria tão longa quanto produtiva. Abração a todos.