Carnaval de 23 despejará dinheiro no país
Foto: Alex Ferro
“Não há tristeza que possa / suportar tanta alegria / quem não morreu da espanhola / quem dela pode escapar / não dá mais tratos à bola / toca a rir / toca a brincar.” A revista Careta, na edição de 11 de janeiro de 1919, revelava a letra de uma das marchinhas carnavalescas que seriam cantadas em verso e prosa no Baile dos Democráticos, um dos mais animados do Rio de Janeiro naquele ano de descarrego. O mundo e o Brasil saíam, entre a dor e o espanto, da gripe espanhola. As autoridades de saúde estimaram a morte de pelo menos 15 000 cariocas em decorrência do vírus, entre 1918 e 1919 — e a folia representava um grito de alívio.
O escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980), conservador por natureza, lembrou, em seu livro de memórias — A Menina sem Estrela — daquele período da infância: “De repente, passou a gripe. Ninguém pensava nos mortos atirados nas valas, uns por cima dos outros. Lá estavam, humilhados e ofendidos, numa promiscuidade abjeta. A peste deixara aos sobreviventes não o medo, não o espanto, não o ressentimento, mas o puro tédio da morte. Lembro-me de um vizinho perguntando: — ‘Quem não morreu na espanhola?’. E ninguém percebeu que uma cidade morria, que o Rio machadiano estava entre os finados. Uma outra cidade ia nascer. Logo depois explodiu o Carnaval. E foi um desabamento de usos, costumes, valores, pudores”. Em março, a Gazeta de Notícias celebraria em manchete, no português daquele tempo e com exclamação: “O Carnaval triumphante!”. Em outubro do ano anterior, o tom era o total avesso: “O Rio é um vasto hospital”.
Não seria exagero comparar o Carnaval de 2023 com aquele de 1919 — tempo em que os quatro sagrados dias de festa terão servido como revanche ao período de fechamento e restrições impostos pelo vírus. No ano passado, com os índices de casos e mortes de Covid-19 empurrando as curvas para baixo, houve algum indício desse movimento, mas foi quase uma farra tímida, feita apenas de Quarta-Feira de Cinzas. Agora não, e a estatística médica autoriza o deus-dará — apesar de a pandemia ainda vigorar, com quase 700 000 mortes no Brasil. Mas no domingo 12, pela primeira vez desde março de 2020, não houve óbito em decorrência da pandemia — embora a média móvel de perdas para os sete dias anteriores fosse ainda de 45 inaceitáveis fatalidades.
É senha sanitária refletida em um outro tipo de estatística, atrelada ao turismo. Pelo menos 5 000 blocos desfilarão pelo chão do Brasil, número semelhante ao da festa de 2020, antes da quarentena. Mais de 46 milhões de pessoas sairão às ruas — 10 milhões a mais do que há três anos — movimentando 8,2 bilhões de reais, quase 2 bilhões de reais a mais do que em 2022. As redes hoteleiras do Rio, Salvador e Recife anunciam ocupação máxima. Espera-se que, entre 16 e 21 de fevereiro, doze navios de cinco companhias atraquem no litoral brasileiro, em um total de 119 000 desembarques de turistas — em movimentação que não se via desde o susto com a Covid-19. “O Carnaval deste ano representará a libertação da pandemia, período sem festas oficiais”, disse a ministra do tur em decorrência do vírus, entre 1918 e 1919 — e a folia representava um grito de alívio.ismo, Daniela Carneiro, em nota enviada a VEJA. O secretário de turismo do estado do Rio de Janeiro, Gustavo Tutuca, dá um passo à frente na celebração: “Pode significar, sim, em momento de extravasar sentimentos, a vitória contra a doença”.
Para além do mar de gente, da chuva, suor e cerveja, do chega para lá ao vírus, há um outro modo de entender o Carnaval de 2023: por meio da postura dos foliões, nas ruas e passarelas. Nas últimas temporadas, logo antes da Covid-19, e no ano passado, havia um tom de comportamento que parecia revidar a postura do governo conservador do então presidente Jair Bolsonaro. Em 2019, ele postou em suas redes sociais um conteúdo pornográfico gravado durante os primeiros dias da festa em São Paulo. As imagens mostravam dois homens dançando em cima de um ponto de ônibus, nus e em cena libidinosa. Bolsonaro, à guisa de criticar o que acontecera, para ele inaceitável, deu um tiro no próprio pé. Foi achincalhado, exposto ao ridículo e teve de retirar a postagem. Debaixo do sol, os brasileiros que não concordavam com sua postura, dobraram a aposta — e poucas vezes se viu tanta gente sem roupa sambando no pé, causando frisson sem amarras. No ano passado, em plena pandemia, a escola de samba Rosas de Ouro, de São Paulo, uma das mais tradicionais da cidade, pôs à frente de um dos carros alegóricos um homem fantasiado de Bolsonaro, com a faixa presidencial e tudo, e que — surpresa! — virava um jacaré ao tomar vacina no ombro. A plateia riu, a fotografia rodou o mundo como manifesto carnavalesco. Em suas redes sociais, o ocupante do Palácio do Planalto tentou rir do evento. Publicou a foto e escreveu: “Que apresentação ruim. kkkkkkk”.
A graça agora é outra, e os enredos das escolas de samba parecem andar ao ritmo dos Carnavais do passado, ao encontro da história do país. A centenária Portela beberá de sua própria travessia, como rios que passaram em nossas vidas. Diz a letra da azul e branco: “Cem anos da mais bela poesia / vivam esse sonho genuíno / de fazer valer nosso legado / vejo um futuro mais lindo / nas mãos de quem sabe o valor do passado”. Portanto, o dedo apontado para essa ou aquela autoridade sai de cena. É assunto velho. Em 2020, cinco das treze escolas do Grupo Especial do Rio fizeram menção à política partidária, com críticas fortes a Bolsonaro. Agora, nenhuma agremiação fará referências explícitas em seus sambas-enredo. Em 2023, sete das doze escolas abordarão temas relacionados ao Nordeste. A Imperatriz Leopoldinense e a Mocidade Independente de Padre Miguel homenagearão Lampião. Os enredos foram escolhidos antes das eleições de outubro do ano passado, mas já se intuía — diante das pesquisas de opinião ou do cansaço — que tinha chegado a hora de virar a página do bolsonarismo. E voltou-se à pauta que nunca deixou de passear pelo Sambódromo e pelas avenidas de antigamente, como regra imutável: o riso associado aos incômodos do país. “As escolas de samba pensam o Brasil há muito tempo, elas sempre foram vanguarda”, diz Alberto Mussa, pesquisador e escritor, coautor do livro Samba de Enredo: História e Arte. “As agremiações têm longa história no combate, direto ou indireto, a diversos tipos de preconceito: religioso, racial, de gênero. Seja em seus enredos e sambas, seja em função de abrigarem em seu espaço indivíduos marginalizados pelo corpo social.”
O Salgueiro, como se resumisse o fim de um tempo e o início de outro, em nome da liberdade de expressão e não de um partido, celebrará o carnavalesco Joãosinho Trinta: “Basta! De violência e opressão / chega de intolerância / a luz da eternidade acende a chama / festejando a igualdade que a felicidade emana / resplandece a beleza do meu rubro paraíso / proibido é proibir, aviso”. Embora, ao menos metaforicamente, no Carnaval seja proibido proibir, não vale tudo — e 2023 será espelho da sociedade. Os debates sobre velhas maneiras de festejar lotam as redes sociais, com críticas aos homens brancos que saem fantasiados de indígenas, pintam o rosto de preto e se vestem com roupas do guarda-roupa feminino. O ponto: etnia e sexualidade não são “fantasia”. A diversidade é fundamental, mas também no Carnaval se impõe o respeito ao lugar de cada um e de todos, numa outra marca fundamental do Brasil que emana depois de um período de opiniões oficiais emboloradas sobre o que pode ou não pode.
As ruas, enfim, contarão um novo capítulo de nosso tempo. “O Carnaval desmantela a ideia de um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar”, diz o antropólogo Roberto DaMatta. Na bagunça saudável, há evidente vontade de se dizer alguma coisa ou, como escreveu Chico Buarque em Que Tal um Samba?: “Para espantar o tempo feio / para remediar o estrago / que tal um trago? / Um desafogo, um devaneio?”. É assim em momentos que sucedem às fases ruins, como os de pós-guerra. Um levantamento feito pelo Departamento de Psicologia da Universidade de Warwick, do Reino Unido, mostrou que os americanos nunca foram tão felizes como no início e meados dos anos 1920, depois da gripe espanhola e do fim da I Guerra Mundial — e antes, portanto, da Grande Depressão, que teve como símbolo o crash da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929. O estudo, o primeiro de seu gênero, comparou, por meio do Google, reportagens de jornais e textos de mais de 8 milhões de livros lançados entre 1820 e 2009. Os twenties foram um tempo de profundas transformações, nos chamados Anos Loucos, colados ao jazz e ao agitar de braços e pernas do charleston, e regados a álcool, apesar da Lei Seca, que proibia a fabricação, venda e transporte de bebida nos Estados Unidos. O Carnaval de 2023 tem essa pegada. Talvez seja preciso tirar a máscara de pierrô e colombina ao entrar no avião, ônibus ou no metrô, e no lugar dela colocar uma máscara sanitária, mas tudo bem. O pior já passou. Vale, sim, festejar.