Lula pressionará Biden a levantar embargo a Cuba
Foto: Carl de Souza e Mandel Ngan/AFP
A pretendida ponte de Lula entre Cuba e Estados Unidos é estratégia para, também, flexibilizar o regime cubano, para promover negócios com a ilha e para exercer uma liderança regional com projeção global. Biden deve exigir concessões democráticas que ainda não aparecem no horizonte. Durante a reunião com Joe Biden na Casa Branca nesta sexta-feira (10), o presidente Lula pretende explorar a possibilidade de promover uma reaproximação entre os Estados Unidos e Cuba, indicando a necessidade de que o governo do democrata Joe Biden volte ao caminho iniciado pelo também democrata Barack Obama.
O assunto é tratado sob estrito sigilo por Brasília devido à sensibilidade da iniciativa e não deve constar abertamente da declaração final por não se tratar de um assunto estritamente bilateral, mas estaria implícito no capítulo de “promoção e inclusão e os valores democráticos na região e no mundo”.
Lula entende que Joe Biden não retirou as barreiras reimpostas por Donald Trump e que é preciso voltar imediatamente ao ponto de Barack Obama para depois, paulatinamente, flexibilizar até acabar com o embargo norte-americano à ilha.
“Historicamente, os presidentes dos Estados Unidos não fazem muito sobre Cuba porque sabem que perdem os votos dos cubanos na Flórida. Acontece, porém, que Biden sabe que, no caso dele, esses votos já estão perdidos. Mas, o que Biden ganharia com um pedido de Lula sobre Cuba? Se reverter o que Trump repôs significasse um lucro político, Biden já teria feito”, explica à RFI o cientista político e sociólogo chileno Patricio Navia, uma referência nas relações entre América Latina e Estados Unidos.
Esse passo beneficiaria Lula e beneficiaria Cuba, mas não parece beneficiar Biden. Para avançar com essa iniciativa, Lula terá de oferecer algo em troca. E esse algo, do ponto de vista dos Estados Unidos, só pode ser que o Brasil ajude Cuba ou Venezuela a moverem peças a favor de uma abertura democrática. Patricio Navia, cientista político da Universidade de Diego Portales e da New York University
Lula ecoa a visão do regime cubano segundo a qual os protestos populares na ilha por falta de liberdade, de alimentos e de remédios são consequência da crise econômica gerada pelo “bloqueio” dos Estados Unidos iniciado em 1960, formalmente aplicado em 1962 e reforçado ao longo do tempo, especialmente em 1992 e 1996, quando os Estados Unidos passaram a penalizar, inclusive, aquelas empresas estrangeiras que investirem em ou que comercializarem com Cuba.
As represálias que os Estados Unidos aplicam são definidas pelo regime cubano como “bloqueio”, denominação adotada pela esquerda latino-americana para justificar as ações autoritárias do regime criado por Fidel Castro.
Para o Brasil, a forma que os Estados Unidos têm de promover a abertura da ilha com respeito aos direitos humanos é oxigenar a qualidade de vida da população cubana, permitindo o comércio internacional com Cuba, além de investimentos dos organismos multilaterais de crédito, hoje impedidos de conceder créditos a Cuba.
O Brasil pretende fechar acordos comerciais com Cuba, mas esbarra no condicionamento de que todas as empresas brasileiras que investirem em Cuba serão penalizadas se fizerem transações em dólar ou se também tiverem negócios nos Estados Unidos.
O assunto foi tratado entre os presidentes Lula e Miguel Díaz-Canel, em Buenos Aires, à margem da reunião de cúpula da Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos, no dia 24 de janeiro.
Segundo a agência oficial de Cuba, Prensa Latina, Lula e Díaz-Canel conversaram sobre possíveis acordos comerciais e Lula garantiu que “o Brasil voltará a ser um defensor de Cuba em instâncias internacionais, especialmente contra o bloqueio econômico, comercial e financeiro imposto pelos Estados Unidos”, há mais de seis décadas.
Após a reunião, o assessor especial do Presidente brasileiro, Celso Amorim, ex-chanceler de Lula, indicou a visão brasileira que passaria por, pelo menos, retirar as empresas estrangeiras do embargo.
“Cuba é sobretudo uma retomada da normalização. O Brasil quer ter relações normais com Cuba. Voltar à votação normal nas Nações Unidas, como fizemos historicamente, de condenar o bloqueio. O Brasil deixou de condenar nesses anos de Bolsonaro, o que é uma coisa absurda”, contou Amorim.
“É claro que isso interessa muito a Cuba, mas isso interessa ao mundo porque é votar contra a aplicação extraterritorial. Você quer fazer um negócio com uma empresa que não tem nada a ver, mas essa empresa termina sem fazer (o negócio) por medo das sanções norte-americanas que são erradas. Nós sempre condenamos essas sanções unilaterais”, avaliou Amorim.
Celso Amorim também indicou que o Brasil não fez nenhuma observação sobre a questão dos direitos humanos em Cuba.
“Nós não fizemos nenhuma repreensão. Não é o papel do Brasil ficar fazendo repreensão”, descartou.
“O governo dos Estados Unidos é muito pragmático. Dialogam com a Venezuela porque precisam de petróleo. Mas Cuba não tem petróleo. Cuba poderia oferecer uma ajuda à transição democrática na Venezuela, conseguindo que haja eleições competitivas. Mas a Venezuela não parece querer eleições competitivas nem Lula parece capaz de conseguir essa oferta”, observa o especialista Patricio Navia.
Segundo a pauta da reunião de Lula com Biden, nesta sexta-feira (10), divulgada pela Casa Branca, os dois presidentes vão conversar sobre como os dois países podem trabalhar juntos para “promover a inclusão e os valores democráticos na região e no mundo”. Os temas também vão passar por “incentivar o desenvolvimento econômico, fortalecendo a paz e a segurança e gerenciando a migração regional”.
Na programação, Lula terá um encontro com o senador Bernie Sanders e outro com deputados democratas. Nos dois encontros, o assunto da importância de uma reaproximação entre Estados Unidos e Cuba poderia ser exposto.
Biden vê Lula como o interlocutor protagonista na região e Lula quer voltar a ser um ator global cuja força reside em liderar a região. Para os Estados Unidos, um intermediário sensato pode ser válido diante dos desafios de Cuba, Venezuela e Nicarágua.
“O Brasil é um fator de equilíbrio na região. Isso nos foi dito por mais de um (país). Acho que isso está muito claro. Talvez seja exagerado dizer que a América Latina não existe sem o Brasil, mas ela fica muito diminuída até na sua voz perante outros grupos”, indicou Celso Amorim sobre o papel do Brasil na América Latina.
“Se Lula quiser ser um ator global, terá de consertar primeiro os problemas na sua vizinhança: Venezuela e Cuba. Para isso, precisa que Venezuela e Cuba façam concessões. De repente, Lula até já tem sinais por parte de Cuba e Venezuela. Nesse caso, os Estados Unidos vão avançar porque é o que lhes interessa da América Latina”, afirma Patricio Navia.
A visão de Lula ficou explícita em julho de 2021, quando inéditos protestos populares eclodiram em Cuba, pedindo vacinas contra a Covid-19, o fim dos apagões diários de energia e liberdade, incluindo a renúncia do presidente Miguel Díaz-Canel. Foi quando Lula pediu a Biden que “aproveitasse aquela a situação para acabar com o bloqueio”, classificando-o como “desumano”.
“Se Cuba não tivesse um bloqueio, poderia ser uma Holanda. Tem um povo intelectualmente preparado, altamente educado. Mas Cuba não conseguiu nem comprar respiradores por causa de um bloqueio desumano dos Estados Unidos”, pediu Lula, através das redes sociais.
“O que está acontecendo em Cuba de tão especial pra falarem tanto?! Houve uma passeata. Inclusive vi o presidente de Cuba na passeata, conversando com as pessoas. Cuba já sofre 60 anos de bloqueio econômico dos EUA, ainda mais com a pandemia, é desumano”, minimizou Lula, comparando com a morte do negro George Floyd, em Minneapolis, nos Estados Unidos, depois de ser estrangulado pelo policial Derek Chauvin.
“Você não viu nenhum soldado em Cuba com o joelho em cima do pescoço de um negro, matando ele… Os problemas de Cuba serão resolvidos pelos cubanos”, comparou. “Os americanos precisam parar com esse rancor. O bloqueio é uma forma de matar seres humanos que não estão em guerra. Do que os EUA têm medo? Eu sei o que é um país tentando interferir no outro”, desafiou.
“O Biden deveria aproveitar esse momento para ir à televisão e anunciar que vai adotar a recomendação dos países na ONU de encerrar esse bloqueio”, sugeriu.
Washington vê em Brasília a capacidade de contrabalançar uma região na qual emergem líderes autoritários com pouco apego aos direitos humanos e às eleições livres, justas e transparentes.
Por isso, a resposta do governo Biden será sempre que os Estados Unidos terão plena relação com qualquer país cujo governo tenha sido eleito de forma democrática, independentemente de questões ideológicas.
“Os Estados Unidos respeitarão e procurarão associação com qualquer governo de qualquer espectro político, de esquerda, de centro e de direita, que for eleito e que governe de forma democrática, mesmo aqueles que tiverem grandes desacordos com os Estados Unidos”, anunciou o representante de Joe Biden, Chris Dood, durante a reunião da CELAC em Buenos Aires.
Durante o Governo de Bill Clinton, o embargo foi reforçado com duas leis (Lei da Democracia Cubana, de 1992, e Lei de Solidariedade pela Liberdade e Democracia de Cuba, de 1996) que limitam as operações comerciais de outros países com Cuba e impedem que o embargo seja suspenso sem autorização do Congresso dos Estados Unidos.
Com a aprovação do Congresso, o presidente americano poderá suspender algumas medidas quando um governo de transição for instalado em Cuba ou poderá eliminar todo o regime de sanções quando a ilha tiver um governo eleito democraticamente.
Porém, há normas e regulamentos que permitem ao presidente dos Estados Unidos uma margem de manobra na aplicação do embargo. Foi o que levou Barack Obama a uma flexibilização, posteriormente revertida por Donald Trump.
“O que precisamos aqui é que as 243 medidas de bloqueio sejam retiradas e o embargo suspenso. É a única coisa que Cuba exige”, disse Díaz-Canel num pronunciamento em rede nacional de rádio e TV, em julho de 2021, no auge dos protestos em Cuba.
“Mas o que Cuba oferece em troca? Os Estados Unidos querem espaços para a oposição cubana se organizar e publicamente defender os seus interesses, mas Cuba não quer fazer concessões. Os cubanos poderiam ganhar muito se fizessem concessões, mas fazer concessões é contra todos os princípios do regime cubano. O problema, então, não está nos Estados Unidos”, interpreta Patricio Navia à RFI.
Em Buenos Aires, Lula apelou à autodeterminação dos povos para argumentar que ninguém se meta em Cuba e Venezuela.
“Espero que Venezuela e Cuba façam aquilo que quiserem e nós não temos de nos meter”, concluiu Lula, depois de defender a “autodeterminação dos povos”, a partir do exemplo da guerra na Ucrânia.
“A autodeterminação dos povos tem de ser respeitada entre os países. Assim como sou contra a invasão russa na Ucrânia, sou contra a ingerência em assuntos da Venezuela”, comparou, criticando a política de pressão através de bloqueios, sanções econômicas e invasões.
“Vamos resolver (a questão na Venezuela e em Cuba) com diálogo e não com bloqueios nem com ameaça de invasão nem com ameaças pessoais. Eu quero para a Venezuela o que eu quero para o meu país: respeito e autodeterminação dos povos. A Venezuela vai ser tratada como todos os países merecem ser tratados”, argumentou Lula.