Mudanças no WhatsApp favorecem golpistas
Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
Diante de uma ferramenta que tem poder de potencializar a disseminação de notícias falsas na internet e das investidas do governo para tentar conter estímulos a atos antidemocráticos no ambiente virtual, a Câmara dos Deputados avalia endurecer o projeto de lei 2.630, conhecido como PL das Fake News. O debate na Casa é principalmente sobre o fortalecimento da regulação dos serviços de aplicativos de mensagem — após o lançamento no Brasil, no mês passado, da função Comunidades pelo WhatsApp — e também uma forma atender ao governo, incorporando ao PL um dos pontos defendidos pelo ministro da Justiça, Flávio Dino, que é a remoção de conteúdos com teor golpista das plataformas.
Pesquisadores alertam que o recurso do WhatsApp que permitiu aos usuários organizar até 50 grupos em uma espécie de guarda-chuva para mandar mensagens para até cinco mil contatos tem potencial para ampliar a viralização de conteúdos, inclusive ilícitos. Para o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), relator da proposta, há uma mudança na natureza dos aplicativos de mensagens que precisa ser levada em conta pelos parlamentares na tramitação do projeto.
— Aquilo que antigamente era serviço de comunicação interpessoal ganha contornos de serviços de comunicação massiva e pode exigir um tratamento diferente. Essa mudança recente do WhatsApp seguramente deve repercutir no debate na Câmara e estará presente na votação final — diz Orlando Silva. — Não nos cabe interferir na arquitetura dos aplicativos. Mas quando deixa de ser comunicação interpessoal e passa a ser comunicação massiva consequência deve ter, inclusive no plano das responsabilidades pelos conteúdos ilegais disseminados.
A redação do PL das Fake News traz regras específicas para os aplicativos de mensageria, que devem “projetar suas plataformas para manter a natureza interpessoal do serviço”. O espírito da regulação proposta vai na linha de impedir a viralização. Pelo texto, as plataformas de mensagem terão, por exemplo, que limitar a distribuição massiva de conteúdo, e listas de transmissão só poderão ser encaminhadas e recebidas por pessoas que estejam identificadas, simultaneamente, nas listas de contatos dos remetentes e destinatários.
A estratégia vinha sendo adotada pelo WhatsApp, que lançou mão nos últimos anos de medidas para reduzir a capacidade de viralização. A concorrência com o Telegram, que permite criar canais exclusivos de transmissão e integrar grupos com milhares de usuários, porém, levou o aplicativo a lançar a opção por comunidades com alcance maior.
— O WhatsApp, apesar dos problemas, vinha introduzindo uma espécie de atrito para viralização de mensagens, quando ele restringe o encaminhamento para muitas pessoas e limita o número de membros de grupos. Com a função de comunidades, subverte essa lógica e muda completamente o produto. Claro que não é exclusivamente como o WhatsApp vai funcionar, continua tendo essa parcela de mensageria privada, mas essa nova funcionalidade reverte a lógica de tudo que a gente estava discutindo — resume a pesquisadora visitante no Centro de Ciências Sociais de Berlin (WZD) e integrante da Coalizão Direitos na Rede Bruna Martins dos Santos.
Diretora do InternetLab, Heloisa Massaro destaca que a discussão já estava colocada com o Telegram, que tem um modelo que mescla chats criptografados com canais que podem ser buscados pelos usuários, e que é preciso estabelecer um debate sobre o que é aplicativo de mensagem e o que não é.
— Quando a gente fala em comunicação interpessoal, a criptografia é muito importante, e isso não pode ser negociado em nome de repensar o que é hoje o WhatsApp ou Telegram. Você não pode pedir uma retenção massiva de dados como a proposta da rastreabilidade anterior, já abandonada. E, para o que está fora da linha, você precisa pensar quais são os mecanismos para garantir a integridade desse espaço. A gente precisa falar de moderação de conteúdo em grupos grandes? Essa é uma questão que surge com o Telegram, ao menos no caso dos canais — aponta.
Pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Yasmin Curzi considera que o PL já traz uma definição para os aplicativos que contempla os casos de grandes grupos:
— Para evitar o espraiamento de desinformação em grupos de comunidades grandes, seja no WhatsApp ou no Telegram, o mecanismo contemplado no PL é o de uma rastreabilidade pautada no processo penal, ou seja, com ordem judicial específica. Não vejo porque haveria necessidade de atualização.
Na semana que vem, a expectativa na Câmara é receber do governo uma lista de sugestões para serem incorporadas ao PL das Fake News. O próprio Orlando Silva tem defendido a inclusão da proposta anunciada por Flávio Dino, de criar obrigações para as plataformas de internet impedirem conteúdo em violação à Lei do Estado Democrático de Direito, após os ataques golpistas de 8 de janeiro.
O secretário de Políticas Digitais da Secretaria de Comunicação Social da Presidência (Secom), João Brant, concorda com a incorporação. Ele afirma que o governo busca um desenho para trabalhar questões emergenciais no âmbito do PL da Fake News, sob coordenação da Casa Civil, e propostas de longo prazo que discutam temas de plataformas não abordados no texto:
— O governo tem a visão de que alguns temas são emergenciais, e o PL 2630 está pronto para ir ao plenário. As preocupações que o Ministério da Justiça traz são pertinentes no sentido de enfrentar a difusão de conteúdos ilegais contra o Estado Democrático de Direito e terrorismo e achamos que tem toda condição de ser incorporado.
No Congresso, a análise da proposta diretamente no plenário encontra resistência da oposição ao governo Lula. O deputado Zé Vitor (PL-MG) vem pleiteando com um grupo de parlamentares junto ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a criação de uma comissão especial para debater o texto:
— É um projeto importante e complexo. Nós precisamos discutir minuciosamente. Deputados novatos querem discutir. Não temos segurança ainda em votar.
Orlando Silva não vê necessidade de uma comissão e diz que haverá espaço para que os deputados recém-eleitos possam dar sua contribuição.
— Nenhum deputado deixará de expressar sua opinião. Até a votação final no plenário os textos podem ser aperfeiçoados — afirma o parlamentar.
Natureza dos aplicativos de mensagens: A criação da ferramenta de Comunidades do WhatsApp, que permite criar espaços com até 5 mil pessoas, levantou o debate sobre os aplicativos de mensagens deixaram de ter apenas espaço de comunicação interpessoal e passarem a ser meio de comunicação de massa. O Telegram também conta com canais e grupos com milhares de usuários. O tema deve ser debatido, segundo o relator do projeto.
Conteúdos golpistas: Após o 8 de janeiro, o Ministério da Justiça anunciou a intenção do governo de editar uma Medida Provisória que criasse mecanismos para obrigar as plataformas de internet a serem mais rigorosas no combate a mensagens com ameaças à democracia. Houve um recuo no formato e a tendência é que o tema seja incorporado no PL das Fake News.
Imunidade parlamentar: Ponto polêmico que já estava na última versão do PL, o trecho prevê estender a imunidade parlamentar para as redes sociais. Especialistas avaliam que a medida pode dificultar a moderação de conteúdo, seja a retirada de postagens que descumpram regras, a redução de seu alcance ou o uso de rótulos para indicar desinformação, e criar uma “blindagem” a políticos. Já seus defensores alegam que o texto apenas reproduz o que já está previsto na Constituição.
Publicação de relatórios de transparência: As plataformas terão que elaborar e publicar relatórios de transparência semestrais com informações sobre a moderação de conteúdo. Nos relatórios, as redes terão que apresentar, por exemplo, informações como o número de usuários no Brasil, dados sobre medidas aplicadas a contas e conteúdos por descumprir regras, pedidos de revisão e sanções revertidas.
Remuneração de veículos jornalísticos: Conteúdos jornalísticos utilizados pelos provedores serão remunerados. A proposta é, com a medida, valorizar a informação produzida pelo jornalismo profissional como forma de combater a desinformação. Serão contempladas empresas constituídas há pelo menos um ano da publicação da lei, que produzam conteúdo jornalístico original de forma regular, organizada, profissionalmente e que mantenham endereço físico e editor responsável no Brasil. Os critérios serão regulamentados posteriormente.