PM ensina suspeitos a mentir e torturar
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A coluna teve acesso ao material didático que é exibido no curso de altos estudos de praças da Polícia Militar do Distrito Federal, que vem sendo questionada por suspeita de conivência com extremistas que depredaram a sede dos Três Poderes, em Brasília.
Em uma apresentação de Power Point sobre a disciplina “Ética, chefia e liderança” são ensinados conceitos de três filósofos: Aristóteles, Immanuel Kant e Jeremy Benthan. Um desses exemplos, porém, tenta adaptar o conceito de “ética utilitarista”, de Benthan, ao trabalho policial. No entanto, apresenta exemplos de conduta totalmente ilegais, sem qualquer crítica, como se fossem normais.
Nos slides, as ideias do teórico Benthan são distorcidas a ponto de dizer que um policial que forja um flagrante ou pratica “pequena” tortura estaria agindo corretamente, segundo a “ética utilitarista”.
Um dos exemplos fictícios citados no curso é o seguinte:
“Batistão é um traficante. Entre tráfico e crimes afins, ele responde a vários processos. Há um mês, ele foi preso por embriaguês ao volante. Os agentes que efetuaram a prisão apreenderam uma porção de cocaína com o detido que disse que era para seu consumo. Os policiais convenceram um transeunte que passava pelo local e nada tinha a ver com o fato a depor contra Batistão, dizendo que “naquele momento estava comprando a droga do meliante”. Assim, mesmo com o fato inverídico, os agentes imaginaram que a maioria da sociedade seria beneficiada, pois Batistão seria retirado das ruas, o tráfico iria diminuir e população seria beneficiada (um maior número de pessoas).”
A seguir, o texto pergunta ao policial-aluno se “acha que os agentes agiram de acordo com a ética e a moral utilitarista”. E questiona: “Mesmo trazendo esse suposto benefício à sociedade, a ação foi correta? Aos olhos da Lei, essa ação pode ser considerada legal?”.
A resposta, no slide seguinte, é por suspeita de conivência com extremistas que depredaram a sede dos Três Poderes, em Brasília.surpreendente. “No exemplo, mesmo utilizando-se de um fato inverídico, a ação seria ética, pois pela ótica utilitarista, a maior parte da sociedade seria beneficiada com a prisão do traficante. Ou seja, para os utilitaristas, os fins justificam os meios”, ensina o material do curso.
Há um outro exemplo de interpretação distorcida:
“O corpo de uma garota foi encontrado em um terreno baldio. A análise do cadáver demonstrou que houve violência sexual antes da morte. Uma testemunha apontou um rapaz chamado Tício, o qual já havia sido preso por violência sexual e estava nas proximidades do terreno naquele dia. Agentes conseguiram capturar Tício, que em princípio negou a autoria do fato, mas assumiu após uma ‘pequena’ sessão de tortura.”
“Tício foi preso e a comunidade ficou mais segura depois de sua prisão, mesmo sem a certeza da autoria do fato. A consequência da ação policial (resultado) foi boa para a maioria das pessoas, portanto considerada ética sob uma ótica utilitarista.”
A seguir, o policial-aluno tem que responder se aprovaria a ação.
A resposta está contida no próprio slide: “Um utilitarista diria: policial, aja de forma que sua ação beneficie a maior parte das pessoas, não importando os meios utilizados”.
Para Juliana de Moraes, doutora em filosofia pela PUC-Rio e pesquisadora da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), é perigosa essa abordagem, ainda mais com a proposta de orientar a prática policial a partir de uma concepção genérica e distorcida de uma doutrina filosófica.
Uma teoria, que tem como seu pilar a maximização do bem estar e pregava a obediência às leis e normas como mais vantajosa para a sociedade, coletivamente, está sendo utilizada para legitimar condutas violentas e desrespeitosas ao próprio ordenamento jurídico do estado democrático de direito.Juliana de Moraes, doutora em filosofia pela PUC-Rio
Robson Rodrigues, coronel da reserva da PM do Rio e antropólogo, também critica o material. Para ele, colocar esse tipo de conduta em uma aula sem nenhuma crítica está fora do que deveria ser ministrado a partir da Matriz Curricular Nacional para as polícias.
“As conclusões desse texto são completamente distorcidas, afrontam a questão legal, ferem completamente o Direito”, observa Rodrigues. “Você não abre um leque de ‘éticas’ e diz ao policial: escolhe qualquer uma que está tudo certo. Ao final, o material deveria definir qual é a ética da corporação. É algo grave que isso esteja institucionalizado”.
Uso de foto do nazismo. Além desses dois exemplos do que a PM-DF interpreta como “ética utilitarista”, em um dos slides o texto diz o seguinte: “O Cálculo Utilitarista diz que as minorias deveriam curvar-se às vontades das maiorias”.
Abaixo, aparece a célebre foto em que várias pessoas fazem saudação nazista e apenas um homem se recusa a levantar o braço —um contexto que dá a entender que a pessoa que resistiu ao nazismo está errada.
O coronel PM e antropólogo lamenta que o conteúdo não inclua uma crítica a esse enunciado. “É inadmissível”, diz Rodrigues.
A reportagem não identificou o autor do material didático, que não contém assinatura.
A coluna enviou e-mail à PM-DF com pedido de comentário sobre o material apresentado no curso de formação de praças, mas não obteve retorno. Se houver resposta, ela será publicada.