90% das compras da Abin sob Bolsonaro foram sigilosas
Foto: Agência Brasil
A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) iniciou um processo de “pente-fino” em compras secretas de equipamentos e programas assinados nos últimos anos. A ideia é identificar se foram adquiridos outros sistemas de espionagem como o que permitia monitorar a localização de qualquer pessoa em território nacional a partir do número do celular, conforme revelou O GLOBO. Entre 2019 e 2022, o órgão assinou contratos que somaram 34 milhões, sendo R$ 31 milhões sob sigilo.
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Durante os três primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro, a agência utilizou uma ferramenta desenvolvida por uma empresa israelense capaz de vigiar até 10 mil proprietários de celulares ao ano, sem qualquer protocolo oficial. Para isso, bastava digitar o número de um contato telefônico no programa, conhecido como “FirtsMile”, e acompanhar num mapa a última localização conhecida do dono do aparelho. Em nota, o órgão reconheceu o uso do sistema e disse que está “em processo de aperfeiçoamento e revisão de seus normativos internos”.
Após o caso vir à tona, o Ministério Público Federal, a Polícia Federal, o Tribunal de Contas da União e a Controladoria-Geral da União abriram procedimentos para investigar o uso do programa espião pela Abin. A nova gestão da agência também passou a levantar informações internas sobre contratações feitas nos últimos quatro anos. Na maior parte desse período, o órgão foi chefiado pelo delegado da PF Alexandre Ramagem, homem de confiança do clã Bolsonaro, eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro em 2022.
Levantamento realizado pelo GLOBO aponta que, nos últimos quatro anos, a maioria das compras realizadas pela Abin por meio de dispensa de licitação para operações de inteligência foi feita mantendo em segredo não apenas o que estava sendo contratado como também qual empresa fornecia o produto.
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Nas publicações disponíveis no Diário Oficial da União, o objeto da compras feitas pela Abin geralmente indica apenas que se trata de “aquisição para a área de inteligência” do órgão. No campo reservado para identificar a empresa contratada, há apenas uma referência a “Estrangeiro SIGILOSO”. Nesse caso, as aquisições são realizadas sem detalhes e sob caráter reservado.
Procurada, a Abin afirma que as contratações seguem todas as disposições legais. Segundo a agência, o sigilo é imposto apenas quando há possibilidade de comprometimento da segurança nacional.
Como faz parte do sistema de inteligência, a Abin tem a possibilidade de fazer contratações sigilosas, sem a necessidade de detalhar o que está sendo comprado. Por isso, é comum que, mesmo dentro do órgão, algumas das ferramentas adquiridas permaneçam sob sigilo e de uso restrito.
Essa prática é criticada pelo diretor-executivo da Transparência Internacional, Bruno Brandão. Segundo ele, há uma brecha na Lei das Organizações Criminosas que possibilita a interpretação de que é possível comprar, sem licitação e sob sigilo, ferramentas especiais de investigação. Essa lacuna surgiu a partir de dois parágrafos introduzidos no texto aprovado pelo Congresso.
Um deles diz que “havendo necessidade justificada de manter sigilo sobre a capacidade investigatória, poderá ser dispensada licitação para contratação de serviços técnicos especializados, aquisição ou locação de equipamentos destinados à polícia judiciária para rastreamento e obtenção de provas”. Segundo Brandão, esse trecho da lei dá margem à aquisição e locação de aparatos de espionagem sem licitação e sob sigilo.
— Essa é uma brecha imensa, que gerou uma situação de total descontrole. Ela permite que órgãos possam adquirir ferramentas cujo alcance nós não temos noção — explica o especialista.
Foi por meio dessa brecha que a Abin comprou o “FirstMile”, programa que permitia rastrear o paradeiro de uma pessoa a partir de dados transferidos do celular para torres de telecomunicações instaladas em diferentes regiões. A agência adquiriu o sistema por R$ 5,7 milhões, com dispensa de licitação, em dezembro de 2018, ainda na gestão de Michel Temer. A ferramenta foi utilizada ao longo do governo Bolsonaro até meados de 2021.
Neste ano, após suspeitas de uso político da agência de inteligência, Lula retirou a Abin do Gabinete de Segurança Institucional, pasta tradicionalmente comandada por militares, e a transferiu para a Casa Civil, sob o guarda-chuva do ministro Rui Costa, braço-direito do presidente no governo. O indicado para a direção-geral do órgão é Luis Fernando Correa, que chefiou a Polícia Federal no fim do segundo mandato do petista.